Na periferia de SP, projeto usa a arte para combater o trabalho infantil
Projeto "Arte e Inclusão Social: Caminhos para a Cidadania" promoveu atividades com famílias de imigrantes na Brasilândia. Em artigo, pesquisadores contam desdobramentos do projeto
Samuel de Jesus Pereira
Andréa Arruda Paula
10 min
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*Este artigo integra o ebook Forum Fashion Revolution 2020, que reúne reflexões sobre moda e sustentabilidade
O trabalho infantil é um fenômeno presente na sociedade brasileira ao longo de todo processo histórico. A partir da colonização portuguesa e a implementação do regime escravagista, crianças indígenas e negras sofreram com os rigores do trabalho infantil. Desde o início, a produção da riqueza no Brasil Colônia está fundamentada na desigualdade social e, posteriormente, com o processo da industrialização relacionado com as transformações de um Brasil pautado em uma economia capitalista, o sistema conseguiu manter intacta uma estrutura de exploração, fazendo com que crianças fossem obrigadas a ingressar nesse sistema produtivo ao longo do século XX.
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Na região da Brasilândia, distrito onde se localiza o bairro Jardim Vista Alegre, famílias de imigrantes, principalmente de bolivianos, muitas vezes, estão envolvidas em seus espaços domésticos com a produção de peças de roupa para a indústria da moda. Diante da realidade econômica em situação de crise acentuada, adolescentes e jovens sentem-se pressionados a buscar seu primeiro emprego sem que tenham qualificação suficiente, originando frustrações diversas e conflitos sociais, econômicos e emocionais em suas vidas.
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Diante disso, o Núcleo de Cultura de Paz e Práticas Restaurativas Nelson Mandela, em parceria com o Instituto Iddeia Cultura e Pesquisa e o Fundo Brasil de Direitos Humanos, propôs o projeto Arte e Inclusão Social: Caminhos para a Cidadania, que foi executado na Escola Municipal de Ensino Fundamental João Amós Comenius, com 100 educandos (as), na faixa etária de 6 a 15 anos, em sua maioria envolvidos com a produção de peças de roupa em seus espaços domésticos, caracterizando situação de proximidade com o trabalho infantil. O projeto contou com o financiamento do Fundo Brasil de Direitos Humanos, tendo início em 15 de março de 2019 e o encerramento previsto para julho de 2020. A base teórica que sustentou e orientou as ações propostas no projeto teceu diálogos com os seguintes autores: Guará (2006), Larrosa (2019), Wilber (2009) e Zumthor (2007).
As atividades e seus desdobramentos
As atividades propostas foram organizadas a partir de quatro oficinas, pensando-as como experiência, que Larrosa (2019, p. 25) compreende como “possibilidade de que algo nos aconteça”, cujo sujeito como território de passagem, precisa estar aberto para o sensível, disposto a desenvolver uma escuta empática, suspendendo a opinião, cultivando a arte do encontro, o sentar em círculo, o olhar atento, paciente e delicado. Ou seja,
Isso envolve fazer da escola e do espaço / território o lugar apropriado para que esses sujeitos vivenciem cada encontro de maneira plena e singular, pois a experiência é algo único, impossível de ser repetida. Assim, a oficina Arte e Moda objetivou promover a leitura de imagens aproximando e colocando o grupo em contato com diversos gêneros artísticos, assim possibilitando contribuir na formação da identidade dos mesmos. Fez-se uso de diversos recursos e linguagens das artes, tais como música, poesia, obras de artistas brasileiros e estrangeiros. Promoveu-se o diálogo sobre a história da moda e seu significado, a moda como construção social, moda e negócio, moda e infância, heróis /heroínas e suas roupas, o “Eu” como protagonista da minha moda.
Em Poéticas do Corpo, as atividades convidaram os participantes a vivenciar o Movimento das Danças Circulares e reunir pessoas para viverem experiências em que a multiplicidade de músicas, danças e gêneros musicais de diversas partes do mundo apresentam possibilidades afetivas, subjetivas e educativas de construção de uma Cultura de Paz, na qual os corpos em movimento se tocam e confraternizam, repensando e reposicionando formas de sociabilidades e de práticas culturais na contemporaneidade pelo viés da formação holística, estimulando o ser (a pessoa) em sua totalidade. “É pelo corpo que o sentido é aí percebido. O mundo tal como existe fora de mim não é em si mesmo intocável, ele é sempre, de maneira primordial, da ordem do sensível: do visível, do audível, do tangível” (ZUMTHOR, 2007, p. 78).
As oficinas de Esportes e Cidadania objetivaram compreender o corpo como um território que precisa ser cuidado e pensar atividades físicas junto às outras atividades do projeto, proporcionando um resgate do brincar, além do incentivo aos hábitos saudáveis e à qualidade de vida das crianças e adolescentes envolvidos no projeto. O esporte na maioria das vezes é entendido como uma prática focada na competição; no entanto, trabalhamos também em uma perspectiva cooperativa baseada na colaboração, na aceitação, no envolvimento e na diversão. Ressaltamos a solidariedade e não a rivalidade, mostrando que a vitória deverá ser compartilhada a fim de que o grupo se sinta à vontade para continuar jogando.
Os encontros na perspectiva da Educação para a Paz objetivaram a promoção de uma cultura democrática, pautada nos direitos humanos, no respeito, na promoção e valorização da diversidade, considerando o reconhecimento e a defesa dos direitos de crianças e adolescentes como um desafio central para as novas formas de produzir conhecimento na contemporaneidade. Buscou-se, ainda, propiciar a reflexão sobre as condições degradantes a que muitas crianças, adolescentes e jovens foram submetidos no passado, quando inseridos precocemente no mundo da produção – durante o período da escravidão (séculos XVI a XIX) – e no sistema fabril (início do século XX), buscando analisar a dimensão individual e coletiva dessa experiência, em vista de compreender de que forma essa realidade contribuiu para produzir uma atitude de cumplicidade ou conivência com essa forma de exploração do trabalho, sendo vista de maneira natural/algo normal até nossos dias. Pensar uma Educação para a Paz tece diálogo com o conceito de Educação Integral, cujo olhar traz o sujeito para o centro do debate. Por isso,
Considerações e desdobramentos finais
A experiência desenvolvida dentro de uma unidade escolar teve um significado importante como um espaço/oportunidade de discussão do currículo, no qual a pauta concernente ao trabalho infantil precisa se fazer presente. Esse trabalho poderá contribuir para que as organizações sociais vejam a escola como um local apropriado e estratégico para iniciar um trabalho educativo, desenvolvendo projetos e ações de prevenção e combate ao trabalho infantil. À instituição escolar cabe, sim, contribuir para ampliar o olhar sobre questões sociais que passam despercebidas, como a de crianças que não fazem as atividades escolares porque ajudam as mães no preparo de doces, salgados e outros, para auxiliar no sustento da família, situação esta que deve ser vista de maneira mais aprofundada. Buscou-se trazer essas inquietações no intuito de construir metodologias para a abordagem desse tema na esfera pedagógica, como um saber transdisciplinar.
O projeto/experiência contribuiu para o fortalecimento da Rede Intersetorial. Nesse âmbito, promoveu a oportunidade para a reflexão e a responsabilização de atores que executam políticas públicas no território para um olhar mais incisivo sobre a questão do trabalho infantil, considerado uma forma de violência que causa impactos negativos na construção da subjetividade da criança, trazendo implicações no seu desenvolvimento enquanto sujeito de direitos. Além disso, propiciou ampliar o entendimento de que a educação acontece em todos os espaços da comunidade, desde a UBS (Unidade de Saúde Básica) local, a praça e os outros espaços públicos da comunidade.
As visitas aos espaços culturais somaram para o fortalecimento de vínculos, provocando a mobilização na perspectiva de formar pessoas mais críticas e conscientes do seu papel social, potencializando-as como agentes de transformação, levando-as a refletir sobre o seu cotidiano, utilizando a arte como instrumento com o potencial de contribuir na sua sensibilização e mobilização.
Mister se faz, ainda, ressaltar os desafios enfrentados em razão da pandemia em curso para a execução do projeto e sua finalização, esta prevista para julho de 2020. Foi necessário antecipar para março o encerramento das atividades do projeto, não sem antes dar os contornos necessários para não romper ou fragilizar laços e relações construídos durante esse período.
Referências
GUARÁ, Isa Maria F. R. É imprescindível educar integralmente. Cadernos Cenpec, v. 2, p. 17-18. São Paulo, 2006. Disponível em: http://cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/cadernos/article/view/168. Acesso em: 28 jul. 2020.
LARROSA, Jorge. Tremores: Escritos sobre experiência. Tradução: Cristina Antunes, João Wanderley Geraldi. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
WILBER, Gabriela Suzana. Inclusão social e cultural: Arte contemporânea e educação em museus. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
ZUMHTOR, Paul. Performance, recepção, leitura. 2. ed. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2007.
Samuel Pereira integra o Grupo de Pesquisa em Educação Integral (GPEI- PUC-SP), Professor da Rede Pública Municipal de Ensino de São Paulo e Membro do Núcleo de Cultura de Paz e Práticas Restaurativas Nelson Mandela. E-mail: samuel.pereira@sme.prefeitura.sp.gov.br
Andréa Arruda Paula integra o Núcleo de Cultura de Paz e Práticas Restaurativas Nelson Mandela. Coordenadora de Projetos. E-mail: nucleodeculturadepaz.mandela@gmail.com
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