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Na prisão, pari meu filho sentada no chão, conta sobrevivente do cárcere

Ativista pelo desencarceramento, Iza Barros conheceu o Código Penal na biblioteca da unidade prisional: “percebi que meus direitos não estavam sendo levados em consideração”.

Maria Edhuarda Gonzaga *

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por Iza Barros, em depoimento à Maria Edhuarda Gonzaga

Digo que sou uma mulher que não se mede, porque não quero que o sistema ou a sociedade me meçam de acordo com o que eles esperam de mim. Se eu tivesse seguido o que eles impuseram como o meu destino, talvez eu nem estivesse viva.

 

Mas antes de ser uma mulher que não cabe nos estigmas impostos às sobreviventes do cárcere, sou Iza Barros: articuladora da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, fundadora da Frente Sergipana pelo Desencarceramento, a primeira presidente do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, abolicionista penal, socioeducadora, graduanda em direito, rapper, trancista e mãe de três filhos

 

Tenho 39 anos, moro em Sergipe há 23, mas o início da minha vida foi nas ruas da zona norte de São Paulo. Aos 14 anos perdi minha mãe e, como meu pai era alcoólatra, eu e meus irmãos fomos morar em um abrigo. Lá, comecei a enxergar o sistema por dentro: quase não havia estrutura para nós, as crianças. Fugimos do abrigo e fomos para as ruas, o lugar onde aprendi tudo que sei sobre respeito, companheirismo e partilha. 

 

Apesar de ter me adequado àquelas condições de vida, fui criando muita raiva da sociedade. Quem mora na rua é extremamente invisibilizado, mesmo sendo muito inteligente e carregando uma vontade imensa de viver. Foi nesse momento que conheci o movimento hip hop. Ele me fez perceber que o único meio que eu tinha para transformar minha realidade era o do conhecimento e da educação. Na época eu trabalhava cuidando de carros e conheci uma pessoa que me ajudou a voltar a estudar. Me agarrei a isso, consegui um emprego melhor e aluguei uma casa para os meus irmãos, sem nunca deixar a escola. 

 

Voltei para Sergipe para cuidar da minha avó materna, que estava muito doente, casei e tive meus filhos. Meu irmão foi morar comigo quando já estava envolvido na criminalidade e eu, sem saber, o acolhi em casa. Um dia, quando eu estava me arrumando para ir trabalhar, a polícia invadiu com um mandado de busca e apreensão. Foi tudo muito violento, meu filho mais velho tinha só oito anos e as crianças não paravam de gritar. 

 

Acharam oito quilos de maconha no quarto do meu irmão. Eu, ele e a minha cunhada fomos detidos na delegacia. Meu irmão disse várias vezes que eu não tinha nada a ver com aquilo, mas fomos ambos torturados. Levei choques, socos no rosto que me fizeram perder alguns dentes e desmaiei. Foram várias violências para me induzir a confessar um crime que eu não havia cometido. 

 

Entraram na minha casa de manhã, mas só fui registrar o boletim de ocorrência às sete da noite. Peguei uma sentença inicial de dezoito anos por tráfico, associação ao tráfico e crime organizado. Usaram um caderno em que eram mantidos os registros orçamentários das festas de hip hop que eu organizava como prova para me indiciar, apesar de eu ter levado testemunhas que atestavam a origem do documento, e que ele não tinha relação alguma com tráfico de drogas. Depois a acusação foi revertida, mas houve muito descaso. Anos depois, pedi a revisão do meu processo para que eu mesma avaliasse a conduta, mas não tive êxito. 

 

Quando cheguei no sistema prisional percebi que ele não estava preparado para acolher as mulheres. Primeiro, tive muito medo porque não sabia o que eu poderia passar ali dentro em meio às outras internas, mas fui bem acolhida por elas. Sofri diversas violações perpetradas pelos profissionais da unidade feminina onde fui alocada. Um exemplo disso foi a minha gravidez. Estava carregando um ser humano há dois meses quando fui privada de liberdade e não tive acompanhamento médico nenhum. Passei por todo esse período sentindo vontade de comer melancia, até o gosto na boca eu sentia, mas as únicas coisas que entravam de fora da prisão eram itens de higiene pessoal, a comida era jogada no lixo. 

 

Uma das minhas piores lembranças foi o momento do parto do meu filho. Ainda na unidade prisional, quando as contrações começaram, demoraram a me levar para o hospital militar e os profissionais da saúde, que eram em sua maioria militares, não paravam de fazer perguntas pessoais. Enquanto eu estava sentindo dores intensas, precisava responder o que eu tinha feito para estar presa, quais crimes tinha cometido e se eu prometia não fugir ao chegar no hospital. Ao chegar, me colocaram numa sala sem nada. Pari meu filho sentada no chão, algemada, com as mãos para trás e dois guardas fortemente armados ali dentro comigo. Gritava o tempo todo pedindo ajuda. Ver o bebê chorando no chão sem poder pegá-lo me fez pensar que eu estava no fundo do poço. Só quando ele nasceu que chamaram a enfermagem e eu fiquei lá sozinha por muito tempo. Uma moça veio me ajudar a levantar e os agentes prisionais não saíram de perto de mim nem por um segundo, até na hora de tomar banho. 

 

Três horas depois trouxeram meu filho enrolado num cobertor e me avisaram que eu ia voltar para a unidade. Lá, eu não tive nenhum atendimento médico e só vinha uma pediatra mensalmente para checar de maneira bem superficial o estado dos bebês, nunca as mães. Perdi tanto sangue no parto que não conseguia ficar em pé. Não sei nem descrever a sensação de levar um filho para dentro de uma unidade prisional, para enfrentar as mesmas violações de direitos que os adultos encaram. 

 

Iza Barros, vestida de verde, durante evento promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos em São Paulo (acervo/Fundo Brasil)

Foi por isso que pedi para o entregarem para a família do pai quatro meses depois. Nem leite eu tinha para amamentar, então eu dava minha comida para outra interna, que também estava lactante, para ela ter mais forças e conseguir amamentar o meu filho no meu lugar, além do bebê dela. Vinte dias depois que ele foi embora, recebi uma intimação de transferência de guarda provisória para a avó paterna, o que foi um choque porque eu nunca disse que esse era meu desejo. Falei para o oficial de justiça que não ia assinar e frisei minha discordância com aquilo. Ele me respondeu que o juiz assinaria por mim. Quando saí do cárcere, meu filho estava com dois anos e reconhecia a avó como mãe. Ela não quis devolvê-lo para mim. Até hoje, passados dez anos, eu não o tenho de volta. Nossa relação é extremamente distante.

 

Por isso, no começo dessa conversa, disse ter apenas três filhos: o quarto, a prisão tirou de mim. 

 

Quando ele foi para casa da avó, comecei a perceber as coisas à minha volta. Muitas mulheres não sabiam ler e escrever, muito menos reconheciam o poder transformador do conhecimento. Montei a primeira turma de alfabetização da unidade e me senti muito útil. Uma das meninas conseguiu escrever uma carta para o filho que também estava privado de liberdade. Isso foi muito importante para mim: me perceber como instrumento de alguma realização mesmo estando naquelas condições. 

 

Fui chamada para trabalhar na biblioteca da unidade e comecei a fazer um projeto de leitura com essas mulheres, porque o acesso aos livros para as internas que não trabalhavam lá dentro era muito burocrático. Eu colocava os livros em um carrinho e ia imaginando o que cada uma delas poderia gostar. Foi numa dessas que encontrei o Código Penal brasileiro. Peguei para ler mais duas vezes depois. Percebi que meus direitos não estavam sendo levados em consideração, somente meus deveres. Comecei a lutar por eles, passá-los para as meninas para que elas soubessem que não era para enfrentarmos nada daquilo porque nossos direitos estavam previstos na lei de execução penal. Comecei a ajudar quem não tinha advogado, analisei processos, fiz habeas corpus assim que aprendi que qualquer um podia fazer. 

 

Quando saí do sistema prisional, ainda tinha muita vontade de aprender. Passei no Enem na segunda tentativa e consegui uma bolsa no Prouni em primeiro lugar no curso de direito. Depois que comecei a estudar, lembrei das que ficaram para trás e pensei que algo tinha que ser feito. 

 

Costumamos achar que a solução dos problemas vai ser a liberdade, mas a liberdade muitas das vezes acaba sendo um problema muito maior já que não temos acesso à educação, à saúde e ao mercado de trabalho. Foi quando surgiu o coletivo Mulheres Arteiras Sergipe, um projeto pautado na luta pela criação de políticas públicas de reinserção e empregabilidade para mulheres sobreviventes do cárcere. A ideia inicial era ganhar dinheiro para podermos nos ajudar, então começamos a trabalhar com o empreendedorismo usando como base uma educação popular, mas percebemos que era preciso mais. 

 

Comparado ao dos homens, o castigo reservado às mulheres encarceradas é maior. Há muitas violências simbólicas. Quando você compara, por exemplo, as visitas que as pessoas privadas de liberdade recebem. A porta das unidades estão sempre repletas de mulheres, que visitam seus companheiros ou seus filhos. São elas que cuidam. Os homens não aparecem. As mulheres pouco recebem visitas. As sobreviventes saem de lá com uma sensação de abandono e às vezes até depressão. Tratar as nossas mentes no coletivo a partir das rodas de conversa foi essencial para a reinserção dessas mulheres. Quando você devolve essa pessoa de uma maneira mais justa na sociedade, de forma que ela entenda que está sendo abraçada, é uma a menos no crime. Das 42 mulheres que fazem parte do coletivo hoje, nenhuma voltou para a unidade prisional. 

 

Em 2021, fundei a  Frente Sergipana pelo Desencarceramento. Por meio de recursos recebidos pela Frente, montamos um projeto chamado Caravana Abolicionista. Vamos para dentro das unidades prisionais levando cultura e informação. Uma parte dela é o slam de poesia, um concurso de poesia baseado na vivência das mulheres privadas de liberdade. Os slams já foram citados pelo MEC como uma das melhores maneiras de incentivar a leitura e a escrita dentro das periferias do Brasil. É muito importante porque a educação é libertadora e por isso mesmo investem pouco nela. O conhecimento cria um povo que pensa e, pensando, vai perceber as mazelas de sua vida e lutar para que as injustiças à sua volta acabem. O conhecimento impede que viremos estatística. 

 

Meu diploma é o diploma de todas as mulheres sobreviventes do cárcere porque eu não fui o que o sistema impôs para mim. E eu não quero que elas se tornem estatística, como eu poderia ter me tornado. Meu estímulo de vida hoje é plantar uma semente para que outras pessoas possam colher a ideia de um mundo onde não existam prisões, que não são nada além de instituições acumuladoras de pessoas com um plano genocida de acabar com elas. 

 

Continuo na luta pela resistência dos sobreviventes do cárcere porque eles existem. Eu atribuo a minha vida a trazer formações e informações às pessoas privadas de liberdade, aos sobreviventes e aos seus familiares. A educação e o conhecimento são coisas que ninguém te tira independente do lugar onde você esteja e, quando passado adiante, a sede de luta jamais cessa. Essa é a solução. 

*Estagiária sob supervisão de Rafael Ciscati

 

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