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Na terra onde morreu Dorothy Stang, um agricultor vive ameaçado

Numa das regiões mais conflituosas da Amazônia, Erasmo Alves Teófilo é ameaçado de morte por grileiros. Desde 2015, 19 lideranças foram mortas na região. Ele teme ser o próximo

Cristivan Alves

7 min

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Já passava das 22h  do dia 12 de dezembro quando Erasmo Alves Teófilo ouviu os primeiros tiros. Três disparos seguidos de uma ameaça esbravejada. Teófilo e família tinham ido passar a noite na casa do pai, uma residência pequena localizada na zona rural de Anapu, cidade no sudoeste do Pará. Aos 33 anos, ele é um homem robusto que, vítima da paralisia infantil, se locomove numa cadeira de rodas.  É, também, presidente da Cooperativa de Agricultores da Volta Grande do Xingu (COOPEVAX). O grupo reúne cerca de 350 famílias que, há mais de uma década, brigam na justiça pelo direito de permanecer — e produzir — nas terras que ocupam. A demanda, conta Teófilo, o colocou em rota de colisão com fazendeiros da região. Grileiros que cobiçam o mesmo território e falsificam títulos de posse para criar gado. Naquela noite de fins de 2019, os tiros que  ouviu eram dirigidos a ele.

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Mais que depressa, Teófilo e a família correram para trancar portas e janelas. “Foi um terror”, conta. Do lado de fora, um pistoleiro gritava, chutava as portas procurando forçar a entrada, dava tiros para o alto e contra a casa. “As únicas armas que a gente tinha eram terçados e facas. Cortaram a energia elétrica, mas eu consegui ligar para a polícia”. Ninguém veio em seu socorro. O cerco durou seis horas – das 22h às 4h da manhã. Na casa, ninguém dormiu. A polícia só apareceria no dia seguinte. Sozinho como veio, o pistoleiro se foi.

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O atentado daquela noite não fora o primeiro vivido por Teófilo. Desde meados de 2019, ele conta sofrer um sequência de ameaças, todas relacionadas à disputa pela terra. Somente no último ano, o conflito vitimou duas lideranças, amigos próximos de Teófilo. Hoje, ele teme ser o próximo a morrer.

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Teófilo e a família vivem num lote de terra na Gleba Pública Federal Bacajá, a cerca de 50km do centro de Anapu.  Trata-se de uma área com aproximadamente 80 mil hectares de terras públicas, às margens do Rio Xingu. Parte delas já destinada à reforma agrária. Teófilo vive no lote 96, que divide com outras 53 famílias, todos agricultores. “Nessa área, há muito tempo vivem famílias de agricultores e ribeirinhos. Mas muitas já foram expulsas à força por grileiros”, conta ele.

Já há décadas, a Gleba Bacajá é uma das regiões mais conflituosas da Amazônia brasileira. Desde 2015, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, ao menos19 agricultores e ativistas foram assassinados ali. As disputas opõem agricultores, como Teófilo — que tentam estabelecer assentamentos em territórios destinados à reforma agrária — a grileiros, que buscam se apossar das terras para criar gado ou explorar madeira.  Foi na Gleba Bacajá que, em 2005, capangas agindo a mando de um grupo de fazendeiros mataram, com seis tiros, a missionária norte-americana Dorothy Stang. Desde a década de 1970, a freira trabalhava na região em proximidade com ribeirinhos e agricultores, em busca de soluções para os conflitos agrários e denunciando os desmandos de fazendeiros. Nesse período, irmã Dorothy idealizou os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS). Os PDS foram pensados como uma maneira de conciliar duas necessidades que, para muitos, parecem antagônicas: a necessidade de manter a floresta em pé e, ao mesmo tempo, permitir que as famílias assentadas cultivem as terras para seu sustento. Um vídeo do site The Intercept explica como funciona esse modelo de desenvolvimento.

A morte de irmã Dorothy atraiu atenção internacional para a região. A comoção que se seguiu não bastou para aplacar a violência em curso. Em Anapu, o trabalho de irmã Dorothy foi continuado por uma dezena de ativistas. Entre eles, aquele que é considerado por muitos seu braço direito, o padre Amaro Lopes.  Em 2018, padre Amaro foi preso numa operação policial, acusado por fazendeiros de incentivar a invasão de terras. Ficou na cadeia por três meses, e hoje responde ao processo em liberdade.

Foi mais ou menos no mesmo período que o rastro de mortes que cruza Anapu pareceu se aproximar de Teófilo. Até ali, era comum que ele recebesse ameaças verbais. “Cheguei a registrar boletins de ocorrência”, conta. A situação já o preocupava, mas logo se agravou. O perigo se tornou iminente quando, no final de 2019, dois amigos seus foram assassinados num espaço de cinco dias entre uma morte e outra.

O primeiro a morrer foi Márcio Rodrigues dos Reis. Reis foi  uma das principais testemunhas de defesa no caso do padre Amaro. Moto-taxista , há anos representava as famílias do lote 44 da gleba Bacajá numa disputa com o fazendeiro Silvério Albano Fernandes, que reivindica a posse daquelas terras. No dia 04 de dezembro, atendeu a uma corrida na zona rural de Anapu. Antes de chegarem ao destino, o passageiro lhe desferiu um golpe de faca no pescoço.

Entre as pessoas que cobraram que a morte de Reis  fosse investigada, Paulo Anacleto se destacou como um dos mais aguerridos. Ex-vereador pelo PT, Anacleto fora conselheiro-tutelar em Anapu. Ele e Teófilo eram amigos de longa data e, por anos, gestaram o projeto de construir uma escola no lote 96. “Paulo Anacleto era um homem duro, que não se eximia”, diz Teófilo, ao lembrar do amigo. “Ele realmente procurou os responsáveis pela morte de Márcio Reis”. Teve pouco tempo para buscar respostas. No dia 09 de dezembro, Anacleto foi morto com dois tiros da cabeça. No funeral do amigo, Teófilo fez um depoimento emocionado.

A sequência de assassinatos fez Teofilo se sentir sob a mira dos pistoleiros. Logo após a morte de Anacleto,  decidiu passar o dia no município vizinho de Altamira. Ao voltar, na noite do dia 12, viu sua casa sob cerco. “Foi aterrorizante”.

A chegada da polícia, no dia seguinte ao atentado, trouxe também algumas respostas. De acordo com o site do Movimento Xingu Vivo, que acompanhou o desenrolar do caso, a polícia encontrou o autor do crime, que morreu em confronto com policiais. Segundo o testemunho de moradores da região, o homem trabalhava para um dos pecuaristas que, há anos, disputa a posse daquelas terras.

Depois do atentado, Teófilo e a família passaram a receber suporte de organizações sociais que atuam em Anapu. Entraram para o programa de proteção a testemunhas. Ele ainda teme por sua segurança. “Ainda esse ano, um homem drogado invadiu minha casa, com uma espingarda na mão. Conseguimos expulsa-lo”, conta. “E, já há dias, eu sou perseguido por um carro preto. Ontem, numa das raras vezes que saí de casa com a família, peitamos de novo com esse carro preto. Anotei as características e enviei para o ministério público”.

Mesmo com medo, a expressão de Teófilo desanuvia quando ele fala do lote 96 e das conquistas de seus moradores. O projeto da escola, iniciado em parceria com o amigo Anacleto, parece prestes a sair do papel. “Nas próximas semanas, começam a chegar mesas, cadeiras e os materiais de construção”, diz, animado. De início, serão ministradas aulas da 1 a  4 série, mas a ambição é de que, num futuro próximo, ela cubra todo o ensino fundamental.

Teófilo também fica animado com o projeto de manejo agroflorestal que planeja implementar no lote 96. “É um projeto muito completo. Vamos plantar mais de 100 mil árvores. Pelo menos 130 mil pés de cacau”, enumera. “Essas são as coisas boas”. As coisas ruins ainda são muitas. Mas ele tem fé de que passarão. Seus pedidos são simples. “Eu só quero paz, meu amigo”, afirma. “Minha família vive aqui, a família da minha mulher está aqui. Só queremos paz, e a solução desses conflitos”.

Com edição de Rafael Ciscati

Foto de topo: reprodução Amazônia Real

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