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No 1º encontro de travestis e transexuais, ativistas cobram segurança para atuar

Demandas foram reunidas em carta que será encaminhada a governos e organismos internacionais

Rafael Ciscati

9 min

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Passava pouco das 14h de uma quinta-feira quente quando Angela Leclery tomou o microfone em mãos. Cantora e transativista, ela vinha sorridente: cabelos castanho-avermelhados meticulosamente arrumados, óculos de aros escuros no rosto, e uma imensa bandeira do Brasil cobrindo o corpo todo. “Peço desculpas por possíveis erros. Passei seis anos sem cantar essa música”, justificou-se, enquanto o aparelho de som fazia soar as primeiras notas do hino nacional brasileiro. A plateia, formada por pouco mais de 60 representantes de movimentos sociais, sorriu satisfeita. Com a apresentação de Angela, estava aberto o 1º Encontro Nacional de Travestis e Transexuais Defensoras dos Direitos Humanos. 

Realizado entre os dias 10 e 12 de agosto na cidade de Serra, no Espírito Santo, o evento reuniu pessoas do país inteiro. Foi encabeçado pela Associação Gold –  organização capixaba que, entre muitas causas, defende os direitos da população LGBTQIA+ – em parceria com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). A intenção do encontro era propor ações para proteger pessoas trans que, nas ruas ou no parlamento, atuam para conquistar direitos. 

“De início, queríamos fazer uma reunião com seis diretoras da Antra”, contou Deborah Sabará, coordenadora de ações e projetos da Gold. Ela própria uma mulher trans de longos cabelos pretos encaracolados, Deborah circulava agitada pelo evento – ora acompanhando a chegada de novos convidados; ora mediando mesas de discussão. “Mas as ambições foram crescendo. De repente eram dez convidadas, 20, 40. Fechamos em 60”, disse satisfeita.

Em parte, a adesão acima da expectativa foi resultado da urgência da pauta. Há pelo menos 14 anos, o Brasil desponta como o país que mais mata pessoas trans e travestis em todo o mundo. Um dossiê organizado pela Antra registrou 131 assassinatos em 2022. Entre as ativistas reunidas no encontro – a maioria das convidadas era de mulheres trans – era consenso que o cenário piorara  desde 2016 ( o marco zero dos tais seis anos durante os quais Angela não cantou o hino nacional). Foi quando um processo de impeachment apeou Dilma Rousseff da presidência e acelerou uma guinada conservadora que levaria Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto. Mesmo antes de assumir o cargo, o mandatário declarou o desejo de “acabar com todo o ativismo” no país. Para as organizações presentes ao encontro, a declaração representava um ataque frontal. 

Nesse período, a violência letal contra defensores de direitos humanos recrudesceu. Em 2022, as ONGs Justiça Global e Terra de Direitos monitoraram 1171 casos de violações contra defensores de direitos humanos. As violências variaram de ameaças a assassinatos. A maior parte delas afetou pessoas que atuam nas pautas de terra e território, como populações tradicionais, camponeses e povos indígenas. “Mas, hoje, a segunda luta que mais mata no país é a luta LGBTQIA+”, disse Sandra Carvalho, coordenadora da Justiça Global. Em 2022, ocorreram 56 assassinatos de defensores da causa LGBTQIA+. “O número pode ser maior. Sabemos que há muita subnotificação”, afirmou. 

Sandra, que também faz parte do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, participou da mesa dedicada a discutir medidas de proteção. Outra das debatedoras, Indianarae Siqueria, se indignou perante os números. “É surreal que queiram nos matar. Só queremos proteger direitos. Quem nos mata são as pessoas que se beneficiam das nossas conquistas”, afirmou. Criadora da Casa Nem, uma casa de acolhida para pessoas LGBTQIA+ no Rio de Janeiro, Indianarae acumula um histórico longo de ameaças e agressões. 

Políticas de proteção

Da esquerda para a direita, a cacica Majur Traytowu, Bruna Benevides, Heliana Hemeterio e o ativista trans Gab Van (foto: Divulgação/Gold)

Desde as eleições de outubro último, a impressão é de que o clima distensionou. No último pleito, o Brasil elegeu, pela primeira vez, duas deputadas federais transexuais: Duda Salabert, por Minas Gerais, e Erika Hilton, de São Paulo. Elas se uniram às deputadas estaduais eleitas naquele mesmo ano e às vereadoras votadas em 2020. A notícia é boa, mas a leitura é de que falta estrutura para que elas atuem com liberdade. Nos meses seguintes às eleições, parlamentares trans figuraram entre os alvos preferenciais da violência política de gênero.

“Precisamos discutir quais compromissos temos com as nossas companheiras. Precisamos proteger e fortalecer essas figuras eleitas”, afirmou Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra. “Precisamos de medidas que garantam nossa atuação segura. Para que lutemos por políticas públicas”.

As urgências apontadas durante o encontro incluem ampliar o número de pessoas trans participando de conselhos de direitos humanos nas três esferas – municipal, estadual e federal. E a criação de programas de apoio psicológico voltados a parlamentares trans. 

Outro foco de preocupações é o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH). Mantido com verbas do governo federal, o PPDDH foi criado em 2004, e implementado depois do assassinato da freira Dorothy Stang, no Pará, no ano seguinte. Tem como objetivo proteger ativistas sob ameaça. Sua criação foi celebrada mas, já há alguns anos, organizações da sociedade civil apontam que o PPDDH sofre com financiamento insuficiente. No caso das ativistas trans, a cobrança é para que os protocolos de trabalho sejam ajustados, pensando nas especificidades dessa população. 

As propostas levantadas foram reunidas em uma carta – apelidada de Carta de Serra, em referência ao município capixaba onde o evento foi sediado. Ao longo dos próximos meses, o documento será encaminhado a governos e a organismos internacionais. 

A intenção é que as propostas também orientem as ações do próprio movimento trans. Em especial no ponto em que a Carta sugere que os movimentos concentrem mais energia na formação de novas lideranças. “Precisamos trazer as meninas mais novas para discussões como essa”, afirmou Choppely Santos, presidente da Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans). “Foram momentos assim que me formaram. E precisamos formar as próximas gerações”. 

 

Encontro reuniu lideranças históricas do movimento trans

A ativista Deborah Sabarah, coordenadora da Gold (Foto: Brasil de Direitos)

As discussões em Serra foram densas, mas o encontro teve ares de reunião entre amigas. Entre risadas e abraços, era onipresente o farfalhar de leques, abertos com vigor para anunciar a chegada de uma nova convidada, ou quando alguém queria chamar atenção para si. Ao longo dos três dias, circularam por lá deputadas e vereadoras trans eleitas, além de políticos cis considerados aliados.

O encontro também reuniu figuras históricas do movimento de travestis e transexuais. Caso de Keila Simpson, presidenta da Antra; e de Jovanna Cardoso. Hoje à frente do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negros e Negras (Fonatrans), Jovanna é uma das pioneiras do movimento de travestis e transexuais. Nascida na Bahia, Jovanna vivia em Vitória quando foi presa, aos 20 anos, na fila do cinema. Não tinha cometido qualquer crime: foi presa por ser travesti. A violência daquela prisão foi o estopim para que ela e algumas colegas criassem, no final dos anos 1970, a Associação das Damas da Noite do Espírito Santo: uma organização dedicada a promover os direitos de prostitutas e mulheres transexuais. 

“É simbólico que esse encontro aconteça no Espírito Santo”, afirmou Keila Simpson, presidenta da Antra, durante a mesa de abertura.“Foi aqui que, na década de 1970, começou o nosso processo de organização política”.

Havia, também, nomes recém-chegados ao movimento. Caso da cacica Majur Traytowu, do povo Boe Bororo. Primeira cacica transexual do Brasil, Majur contou que sua identidade de gênero nunca lhe causou desconforto entre indígenas. O que lhe causa temor são as invasões de madeireiros ilegais ao território de seu povo, a terra indígena Tadarimana, em Rondonópolis, no Mato Grosso.

A diversidade de vozes – e desafios – pretendia reforçar o papel exercido por essas mulheres enquanto defensoras de direitos. “Defendemos todas as pessoas. Não somente pessoas trans e transexuais”,afirmou Deborah Sabarah, da Gold. Ela ressaltou que essa atuação precisa ser valorizada e protegida. “Precisamos nos reconhecer enquanto defensoras dos direitos humanos”.

Ainda que o encontro tenha durado somente três dias, a ideia de realizá-lo foi acalentada por Deborah por alguns anos. Ela conta que começou sua trajetória no ativismo ainda adolescente, atuando em projetos ligados à igreja católica. Na Gold, desenvolve atividades com adolescentes internados no sistema socioeducativo. O trabalho lhe trouxe projeção em Vitória, onde vive. E também tornou Deborah alvo de hostilidades: em abril de 2022, ela foi alvo de transfobia na Câmara Municipal de Vitória. O episódio ocorreu durante uma homenagem feita pelos vereadores a ela e a outras 37 mulheres. Um dos vereadores questionou a presença de Deborah entre as agraciadas. “Ela pode ter filhos? Pode amamentar?”, disse. 

A violência contra Deborah chegou ao ápice tempos atrás, quando sua casa foi invadida por três homens. Ela e o filho adolescente foram feitos reféns durante uma noite inteira. Ela atribuiu o ataque à sua atuação como ativista. Assustada, buscou mecanismos de proteção a defensoras  – mas disse que não os encontrou. “Quando busquei os serviços de proteção, me questionaram: ‘mas será que isso não aconteceu porque você marcou um encontro com alguém por aplicativo?’”, disse. “Quem trabalha nos serviços de proteção precisa aprender a olhar para as travestis”. Deborah conta que se sentiu negligenciada. O projeto de realizar o encontro em Serra surgiu logo depois, como uma forma de discutir e combater essa negligência. 

Foi esse desejo de mudança que orientou o encontro. “Queremos criar uma nova história a partir daqui”, disse Keila Simpson, da Antra. “Nossa história [ de luta política] começou quando Jovanna foi tirada, à força, da fila do cinema. Precisamos de uma história nova. Já me disseram que sou um atentado violento ao pudor. Para mim, isso são os direitos humanos: poder ser uma travesti de 58 anos livre”. 

 

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