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No Brasil, meritocracia é discurso da supremacia branca, diz pesquisadora

Há mais de 12 anos, Lia Vainer Schucman se dedica a estudar a branquitude —ou, o lugar de poder ocupado por pessoas brancas. Segundo ela, o discurso do mérito reforça desigualdades

Rafael Ciscati

11 min

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A professora Lia Vainer Schucman, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), costuma  contar uma história dos tempos em que pesquisava para sua tese de doutorado. Na época, há cerca de 12 anos, Lia investigava o que significa ser branco no Brasil. Todos os seus entrevistados concordavam que, de uma forma ou de outra, ter a pele branca lhes garantira vantagens. A uma das entrevistadas, Lia perguntou em que momentos ela se lembrava de que era branca: “Eu lembro que sou branca quando meu amigo ‘moreno’ me fala que acordou com o cabelo ruim. E eu nunca acordo com o cabelo ruim. Meu cabelo é sempre bom”, disse a mulher.  “É isso a branquitude” explica Lia, durante uma palestra do TED em São Paulo, ministrada quatro anos atrás. O vídeo está disponível na internet. “É a ideia de raça sendo utilizada para construir uma estética, definir o que é belo. Branquitude são os privilégios simbólicos e materiais associados à brancura da pele”. 

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Em 2008, quando ela defendeu sua tese, “branquitude” era um tema pouco falado nas universidades brasileiras. O conceito é usado para descrever como, nas sociedades estruturadas pelo racismo (caso da brasileira), pessoas brancas ocupam lugares de  privilégio simplesmente por serem brancas. A branquitude é esse lugar de poder, assegurado pela ideia de que pessoas brancas são superiores. 

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Os estudiosos da branquitude se dedicam a entender ainda um segundo fenômeno: o fato de que, apesar de usufruir de privilégios raciais, raramente o “branco” é pensado como raça. Funciona da seguinte forma: a ideia de raça, explica Lia, surgiu na Europa do século XIX como uma espécie de pseudociência. Consistia em associar cor da pele, e outros traços físicos, a comportamentos e valores morais. Às pessoas vistas como brancas, são associados valores positivos, que lhes garantem certas vantagens sociais. Mas essa mecânica costuma ser ignorada. “A branquitude é uma identidade racial que não é pensada como raça. Que se pensa neutra”, lembra a professora na mesma palestra. O resultado é que as conquistas das pessoas brancas são sempre entendidas como resultado de mérito individual. Nunca como uma conquista de um grupo, ou como reflexo de uma sociedade desigual. “Todo o discurso de mérito no brasil é um discurso da supremacia branca à brasileira”, diz Lia, nessa entrevista a Brasil de Direitos.

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Os chamados “estudos críticos da branquitude” são um campo de investigação relativamente recente. Seu marco inaugural é um texto da intelectual estadunidense Peggy MacIntosh publicado em 1989. Num ensaio de três páginas, MacIntosh descreve uma espécie de tomada de consciência: a de que sua pele branca lhe permitira acesso a espaços e possibilidades que eram vetados a pessoas não-brancas. Antes dela, intelectuais negros já haviam se debruçado sobre o assunto: num texto dos anos 1930, o sociólogo estadunidense W. B. Dubois descreve a brancura da pele como uma espécie de posse simbólica, que permitiria às pessoas brancas o direito à mobilidade social. 

Esses escritos propunham uma perspectiva nova : até ali, o comum era que os trabalhos sobre relações raciais tomassem, como objeto de estudo, as vivências das pessoas racializadas, como negros e indígenas. MacIntosh e seus companheiros invertiam o tabuleiro: colocavam as experiências das pessoas brancas sob escrutínio.  

A ideia interessou a Lia.  Uma mulher branca, ela passara anos intrigada pela mecânica das relações raciais. “Eu queria entender o que dava a uma parcela da sociedade esse poder de nomear os outros. Quem é que decide que o outro é judeu, indígena, negro”, conta ela. “Quando comecei a fazer isso, eu era vista como uma espécie de alienígena”. 

O cenário mudou nos últimos 12 anos. De lá para cá, os resultados da pesquisa de Lia foram publicados em livro  — Entre o encardido, o branco e o branquíssimo, que ganhou nova edição em agosto do ano passado. E as conversas sobre branquitude ganharam destaque em espaços acadêmicos e no debate público: em julho de 2020, as buscas pelo termo no Google chegaram a seu pico histórico. De “alienígena”, ela  passou a ser convidada frequente de ciclos de palestras e entrevistas. 

Na avaliação dela, tamanho interesse denota que algo mudou na maneira como a sociedade conversa sobre racismo e relações raciais. Essa mudança ficou bem demarcada em 2020, quando protestos antirracistas eclodiram em diferentes países e a pauta ganhou relevo no noticiário. Ressalva, no entanto, que os estudos sobre branquitude cresceram em popularidade por mérito do movimento negro, e dos intelectuais negros que entraram nas universidades ao longos das últimas décadas. “Para os pesquisadores brancos, ser objeto de estudo ainda é motivo de extremo desconforto”. 

Brasil de Direitos: Branquitude e “identidade racial branca” são sinônimos?
Lia Vainer Schucman: Não acho que sejam. Eu não gosto desse conceito. Branquitude também não é sinônimo de “pessoas brancas”, como muitas vezes a palavra é usada nas redes sociais. Para haver uma identidade, é preciso que as pessoas compartilhem um terreno comum —a cultura, por exemplo. Agora, compare um descendente de portugueses, cuja família herdou terras e acumulou riquezas às custas do trabalho de pessoas escravizadas, e um libanês, que chegou ao Brasil fugindo de uma guerra. O que há em comum entre eles? Nada. Eles não comem a mesma comida, talvez não tenham a mesma religião, e nem mesmo nasceram no mesmo continente. Mas, no Brasil, essas duas pessoas são consideradas brancas. E, por isso, essas duas pessoas usufruem de certos privilégios. Por isso, eu gosto de pensar a branquitude como uma posição de poder. A branquitude é um lugar de privilégio nas sociedades estruturadas pelo racismo. Isso se repete em todas as sociedades de passado colonial— quase todas no mundo, portanto.Talvez não seja assim entre os esquimós. Entre eles, talvez a brancura da pele não signifique branquitude. 
 
Se esses privilégios desaparecerem, a ideia de branquitude também perde o sentido?
Eu aposto nisso. Se não houver racismo, o que sobra de comum entre os brancos? Em que a família portuguesa se assemelha com a minha família? Em nada. A sociedade é racista e, por isso, nós dois temos privilégios. Mas não temos nenhuma história comum. 

Quando a branquitude virou tópico de estudo?
Os estudos críticos da branquitude, com esse nome, surgem na década de 1990. Um dos primeiros textos a falar do assunto é um ensaio da [intelectual estadunidense] Peggy MacIntosh. Uma espécie de manifesto que ela publica, falando de seus privilégios. Antes disso,os estudos sobre branquitude têm sua maior dívida intelectual com um sociólogo chamado W.E Dubois. No texto Black Reconstruction of America (A reconstrução negra da América, em tradução livre), Dubois introduz a ideia de brancura como uma posse simbólica e material. Ele diz que a brancura traz garantias que permitem às pessoas brancas terem mobilidade na estrutura de classes. É algo de que o marxismo clássico não fala. No Brasil, o [sociólogo argentino]  Carlos Hasenbalg aborda essa discussão, antes da chegada dos estudos sobre branquitude. Hasenbalg mostra como imigrantes europeus pobres chegam ao Brasil e ascendem socialmente. Segundo ele, os postos de trabalho que as pessoas podem  ou não ocupar  estão associados ao valor simbólico da brancura.

Os trabalhos de Dubois são da primeira metade do século XX. O que muda nessa discussão a partir dos anos 1990?
Nos anos 1990, o campo se solidifica. Ganha reconhecimento no âmbito dos estudos das relações raciais, com uma perspectiva de pensar o branco, pensar a categoria branca. Isso tem um objetivo político. A invenção da raça é uma obra de brancos europeus.  Eles inventaram essa ideia de raça, mas não falam de si mesmos. Falam de si como se fossem neutros, como se fossem representantes de humanidade, e não entendem que as relações raciais dão a eles lugar de privilégio. Se o outro é o negro, o indígena, o oriental, ele é o branco. O maior intuito dos estudos sobre a branquitude é retirar o branco do lugar de norma. 

Virar objeto de análise causa desconforto?
O incômodo é grande. Há quem se sinta ofendido quando lhe perguntam o que é ser branco. Você o chama de branco e, ao fazer isso, não enxerga toda a história dessa pessoa. Mas é isso a raça. E, de repente, o feitiço se volta contra o feiticeiro. Quando a raça é colocada naqueles que inventaram a categoria raça, há um incômodo profundo. Porque os brancos estão acostumados a se verem como indivíduos, pessoas, universais. 

As buscas pelo termo “branquitude” no Google chegaram ao seu pico histórico no ano que passou. Algo mudou na maneira como falamos sobre relações raciais no Brasil em 2020?
Mudou. O racismo parou de ser pensado como uma atitude individual, para ser discutido como algo que estrutura a sociedade. Você vê as pessoas falarem sobre racismo estrutural nas redes de televisão. O assassinato do Beto Freitas, no Carrefour, foi noticiado como um caso de racismo. Ainda existe quem negue, mas foi esse o tratamento que o caso recebeu nas maiores mídias. O mesmo se passa com o racismo institucional. Há cinco anos, se você fosse a um lugar em que só houvesse pessoas brancas e perguntasse: ‘há racismo aqui?’, as pessoas diriam que não.  Afinal, não haveria uma pessoa negra sendo maltratada . Hoje, a postura é outra. A ausência de pessoas negras é entendida como uma manifestação de racismo institucional. Como um sinal de que aquela instituição não foi capaz de promover igualdade de oportunidades para grupos raciais diferentes. 

Logo depois de Beto Freitas ser assassinado, o vice-presidente da república afirmou que não existe racismo no Brasil. Apesar dos avanços, o discurso da democracia racial, do convívio harmônico, sobrevive?
Eu gosto de pensar que a ideia de convivência não elimina a ideia de hierarquia. Homens convivem com mulheres todos os dias. Isso não quer dizer que a mulher não seja vista como ocupante de uma posição hierarquicamente inferior.  O Brasil cria a história da convivência para se opor aos EUA e à África do Sul (que criaram regimes e leis de segregação). Agora, a nossa convivência é bem violenta. A voz da mulher não tem o mesmo lugar que a voz do homem. Como intelectual, eu não tenho o mesmo lugar que um homem. Negros e brancos, nessa sociedade, não têm o mesmo lugar. Eles convivem. Mas diferem em poder.  A convivência não retira a hierarquia. A história do Brasil é a da convivência. As amas de leite amamentavam as crianças brancas. Quer uma convivência maior que essa? Mas elas amamentavam as crianças brancas e deixavam de alimentar os próprios filhos, que ficavam desnutridos. Convivência não implica em harmonia ou pacificidade. 

Negar que exista racismo no Brasil é uma forma de manutenção do racismo?
Essa negação da existência do racismo é uma estratégia de racismo. É exatamente uma expressão da supremacia branca. Ao dizer que não existe racismo, a pessoa afirma que, se os brancos estão numa posição de poder, é porque eles são melhores. Quer uma afirmação de supremacia branca maior que essa? Todo o discurso de mérito no brasil é um discurso da supremacia branca à brasileira. Não dizemos que somos melhores, não dizemos que os brancos são superiores geneticamente. Dizemos que “temos oportunidades iguais”. 

Foto de topo: reprodução Facebook

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