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No Mato Grosso do Sul, a vida indígena vale menos que um boi, diz ativista

Ação truculenta da polícia provocou mortes entre guarani-kaiowá em Amambai, no Mato Grosso do Sul. Há décadas, indígenas reivindicam demarcação de territórios tradicionais.

Rafael Ciscati

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No dia 24 de junho, a Polícia Militar do Mato Grosso do Sul encabeçou uma ação de repressão contra um grupo de indígenas guarani-kaiowá que ocupa uma fazenda na região da cidade de Amambai, no interior do estado. A área, chamada pelos indígenas de Guapo’y mirin, é um território tradicional para esse povo, que reivindica sua demarcação. A atuação da PM foi violenta: resultou na morte de um indígena. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), pelo menos dez pessoas ficaram feridas.

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Entre os guarani-kaiowá, o incidente ficou conhecido como “massacre de Guapo’y”. Em nota divulgada no dia 25, a Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, afirmou que a polícia agiu sem ordem judicial. O conflito ainda é uma questão em andamento: na segunda-feira (4), a justiça federal em Ponta Porã negou um pedido para despejar os Guarani-Kaiowá da retomada. “Na situação dos autos foram colhidos elementos mais do que convincentes a respeito da relevância da discussão promovida pela comunidade indígena, o que justifica pelo menos que recebam a proteção integral e atenção às suas reivindicações, oportunidade a partir da qual poderão ser impelidas a se retirarem do local tomado”, decidiu o juiz.

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O massacre de Guapo’y mirin entra num rol de violências de que os guarani-kaiowá do Mato Grosso do Sul são alvo há gerações. Entre o final do século XIX e o início do século XX, a população indígena do estado foi confinada em reservas — áreas pequenas, onde não há terra suficiente para manter cultivos ou criar animais. Na época, o governo brasileiro trabalhava com a ideia de que os povos indígenas eram categorias “transitórias”, que iriam eventualmente abandonar suas culturas originárias e ser assimilados pela sociedade nacional. No mesmo período, os governos estadual e federal concederam títulos de posse a fazendeiros que, hoje, ocupam os territórios tradicionais desses povos. Os guarani-kaiowá reivindicam a demarcação de suas terras. Mas a demanda esbarra em um nó fundiário criado pelo próprio Estado. Sem terra para cultivar, os indígenas organizam retomadas: ocupações e acampamentos em territórios sob disputa.
 
O conflito fundiário se soma à intolerância religiosa. Em 2021, ao menos sete casas de reza desse povo foram incendiadas no Mato Grosso do Sul, segundo cálculos da Aty Guassu. “As lideranças religiosas Guarani-Kaiowá são criminalizadas, acusadas de feitiçaria. No Mato Grosso do Sul, nossas vidas indígenas são ameaçadas pela bala, pelo boi e pela bíblia”, afirma Rosicleide Guarani-Kaiowá, liderança da Retomada Aty Jovem (RAJ). “Aqui, a vida de um indígena vale menos que um boi”.
 
Nesse depoimento à Brasil de Direitos, Rosicleide relata a escalada das tensões na região.
 
 
 
 
“Nos últimos anos, os ataques às retomadas se intensificaram. Nessas ações, os fazendeiros mobilizam seguranças particulares, e usam maquinário agrícola — como tratores — para destruir as casas dos indígenas. É comum que sejam destruídas nossas casas de reza. As lideranças religiosas Guarani-Kaiowá são criminalizadas, acusadas de feitiçaria. No Mato Grosso do Sul, nossas vidas indígenas são ameaçadas pela bala, pelo boi e pela bíblia.
 
Desde que a retomada de Guapo’y mirin começou, observamos movimentações entre os fazendeiros. A caminho da faculdade, passo por um trecho de estrada próximo da retomada. Por dias, vi o vai-e-vem de carros seguindo naquela direção. Em parte por causa disso, o ataque do dia 24 nos pareceu uma ação bem organizada. Ele contou com o apoio da polícia que chegou sem aviso. As pessoas não tiveram tempo de fugir. Havia crianças no meio.
 
Essas formas de ataque são cruéis. Não há armas nas comunidades. Há flecha, cocar, maracá. Apetrechos tradicionais que as comunidades não usam para machucar. O maracá, nós usamos nas nossas rezas. Por que esses territórios sob disputa são sagrados para nós. São territórios tradicionais dos quais fomos expulsos violentamente, há muito tempo. Com as retomadas, não queremos tirar nada de ninguém. Só queremos, de volta, aquilo que é nosso.
 
Mas, hoje, nossas reivindicações são recebidas com violência. As fotos do massacre do Guapo’y mirin dão mostras disso. Houve mortos, há adolescentes com as vísceras expostas. Tudo o que aconteceu me faz sentir que as nossas vidas não valem nada. Os lugares onde estão nossas raízes, onde estão nossa cultura, para essas pessoas significam dinheiro. O governo chama esse avanço do agronegócio de progresso. Nossas terras tradicionais hoje são tingidas por sangue.
 
Esse contexto de violência tem impactos sobre a saúde mental dos jovens guarani-kaiowá. São comuns os casos de suicídio. Eles são reflexo da forma como vivemos. Nos Mato Grosso do Sul, o governo confinou os indígenas em reservas. Não são terras demarcadas — são pequenas porções de terra, de tamanho insuficiente para atender às necessidades desses povos. Para nós, são cercadinhos. São chiqueirinhos.
 
Há fazendas sobrepostas às áreas de retomada. Ali, os fazendeiros deixam claro que é proibido caçar ou pescar. Sem terra para cultivar alimento, sem poder caçar, de que o indígena vai viver? De onde a gente vai tirar o peixe para comer, ou a lenha para aquecer nossas noites frias?
 
A forma como a polícia respondeu à retomada de Guapo’y mirin dá mostras de como o governo nos trata. O indígena é tratado como bandido, como alguém que deve ser punido, alguém que pode ser morto. Tem sido assim por toda a minha vida. A vida de um indígena vai menos que a de um boi. Vale menos que um pé de soja.
 
Desde então, criamos formas de apoiar o grupo que está na retomada. Levamos comida. É difícil ouvir os relatos que vem da comunidade. Muitos jovens que estão na retomada nunca tinham vivido terror semelhante ao do dia 24. Muitos ficaram sob a mira de uma arma. Viram colegas e familiares sendo atingidos por balas. Além das doações, temos hoje colegas psicólogos que vão à retomada tentar oferecer apoio psicológico a essa juventude. Mas me pergunto: como esses jovens vão refletir, daqui para a frente, sobre o que aconteceu? Seus companheiros foram mortos pela polícia. Foram mortos, portanto, pelo Estado. Quais serão os reflexos disso para suas vidas
 
Essa não foi a primeira violência que enfrentamos. Não vai ser a última. Enquanto não demarcarem nossos territórios tradicionais, não vamos recuar. Enquanto isso, quero que nossas vozes sejam escutadas. Não queremos viver essa realidade de racismo, morte e criminalização.”

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