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O autocuidado tem função política, defende ativista

Problemas como estresse pós-traumático e depressão afetam defensores de direitos. Para Jelena Dordevic, é preciso criar espaços para falar sobre questões individuais

Rafael Ciscati

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Por Rafael Ciscati 

Em outubro de 2000, quando o líder sérvio Slobodan Milosevic perdeu as eleições para a presidência do país, Jelena Dordevic saiu gritando em êxtase pelas ruas da capital, Belgrado: “Ele caiu, ele caiu!”, comemorou, cercada pelas amigas.

Ao longo de toda a década anterior, Milosevic fora  apontado como um dos principais responsáveis por colocar em curso uma política de extermínio étnico que matou centenas de milhares de pessoas, entre sérvios-muçulmanos, bósnios e croatas. Na época, a Sérvia, onde Jelena nasceu, fazia parte da Iugoslávia — um país que se dissolveu em meio a uma sangrenta guerra civil. Por isso, a deposição de Milosevic, naquele começo de década, vinha acompanhada pela expectativa de que, enfim, as coisas melhorariam.

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Jelena tinha pouco mais de 20 anos. Nascida em uma família de artistas e militantes de esquerda, tomou fôlego para se envolver no combate ao tráfico de mulheres e meninas. O trabalho era árduo e, com alguma frequência, as manifestações que ela e suas colegas organizavam eram violentamente reprimidas pela polícia. Logo, a esperança deu lugar à exaustão: “Nós tínhamos tirado a cabeça que comandava aquele estado violento, mas o aparato continuava todo lá”, conta ela.  “Eu via minhas companheiras caírem doentes, uma a uma. E eu mesma adoeci”.

Quase duas décadas depois, Jelena diz que guarda desse episódio ao menos duas importantes lições. A primeira diz respeito a certa maturidade política: “Entendi, com o tempo, que não basta tirar uma pessoa do poder para mudar todo sistema”.  A segunda lição foi aquela que selou seu destino como militante a partir dali: a de que, para garantir a continuidade do trabalho, os defensores de direitos humanos precisam atentar para o próprio bem estar e segurança. “O autocuidado tem importância política”, afirma.

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Desde 2004, Jelena se encarrega de pesquisar e documentar estratégias de autocuidado empregadas por grupos de defesa de direitos ao redor do mundo: “Essa busca pela segurança e pelo bem estar vem de longe, faz parte da resistência. E foi essencial para que esse grupos sobrevivessem”, afirma.

O trabalho já a levou a lugares tão variados quanto o Oriente Médio, a Chechênia e o Brasil, onde mora há oito anos: “ Vim ao Brasil buscar novos caminhos para a luta e para a minha vida, e para me afastar da guerra”, diz ela. “Qual não foi minha surpresa quando cheguei ao Rio de Janeiro e deparei com a guerra aqui, na forma dos caveirões que sobem para as favelas”.

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A pesquisa também resultou na publicação de um livro em 2007  – “Que sentido tem a revolução se não podemos dançar”, escrito à quatro mãos com a americana Jane Barry. Na obra, as duas autoras examinam a vida de mulheres militantes para tratar daquilo que Jelena chama de as “três dimensões do autocuidado”: a individual (que envolve conhecer melhor sua história e necessidades individuais); a das relações entre militantes dentro de um grupo; e a dimensão social. “Essa última se refere aos cuidados na sociedade em geral”, explica ela. “ As pessoas precisam de um sistema de saúde que funcione, precisam de aposentadorias, precisam ter o que comer e um teto para onde voltar. Se não, de nada adianta ter espaços para cuidados imediatos”.

As discussões sobre autocuidado ganharam popularidade nos últimos anos conforme cresceram as preocupações relacionadas à saúde mental, e a males cada vez mais prevalentes, como depressão, ansiedade e burnout – a exaustão provocada pelo excesso de trabalho.

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Entre defensores de direitos humanos, no entanto, o assunto é ainda um tópico delicado: “O ativista, muitas vezes, se faz de durão. É uma técnica de defesa”, diz Jelena. “Por que é muito difícil você se permitir sentir no meio da guerra”. A tática não é suficiente para protegê-los. O excesso de trabalho e o contato constante com situações de violência ou de grande tensão deixam marcas psicológicas e físicas. Em 2015, uma equipe da escola de medicina da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, avaliou a saúde psicológica de 346 pessoas envolvidas em organizações ativistas ou que faziam algum tipo de trabalho humanitário. Cerca de 20%  apresentavam sintomas típicos de burnout. Uma parcela semelhante apresentava sintomas graves de estresse pós-traumático — para comparação, nos Estados Unidos, a prevalência desse transtorno gira em torno de 7% da população.

Amenizar esse quadro  exige desafiar algumas verdades pré- estabelecidas entre defensores, dizem as autoras. A de que o excesso de trabalho é uma realidade dada e incontornável, por exemplo. Ou a de que ” verdadeiros ativistas morrem pela causa ” e não podem se permitir certos confortos.  Num dos trechos do texto, Jelena e Jane contam a história de uma brasileira que, depois de anos dedicados ao trabalho humanitário ( e a cuidar da própria família, numa dupla jornada extenuante), se permitiu passar por uma loja e comprar o par de sapatos que desejava há tempos. Ela se sentia fútil — e as próprias autoras, elas admitem, acharam a atitude um pouco frívola quando ouviram o caso: “A verdade é que nós julgamos demais. Julgamos demais uns ao outros e a nós mesmos”, escrevem Jelena e Jane. 

A solução também passa por cobrar mudanças nas maneiras como o trabalho humanitário é financiado.  Com alguma frequência, financiadores — públicos ou privados — cobram que as organizações apoiadas deem provas objetivas da efetividade de suas ações, algo nem sempre possível. Ou que preencham um sem número de relatórios como condição para manter o financiamento. Com certa frequência, também, os grupos de ativistas não consideram, nos custos de seus projetos, itens importantes: como a necessidade de pagar salários adequados pelo próprio trabalho.  De acordo com as autoras, essa interação entre grupos apoiados e financiadores precisa melhorar.

Um dos pontos mais complexos, no entanto,  talvez seja convencer defensores de direitos humanos a falar sobre si mesmos. Essa recusa complicou a elaboração do livro de Jelena e Jane: durante as entrevistas, as ativistas tentavam desviar o rumo da conversa, de questões individuais para aquelas relacionadas aos retrocessos que elas combatiam.

Nas atividades em grupo que conduz, Jelena tenta driblar essa resistência lançando mão de uma série de exercícios corporais que, segundo ela, ajudam a relaxar e aliviar o estresse. É uma forma de vencer barreiras: e convencer os presentes de que se encontram em um lugar seguro, onde podem falar sobre problemas pessoais sem temer julgamentos. “Nessas ocasiões, eu sempre ouço coisas como ‘poxa, te conheço há 20 anos e não sabia que você passava por isso, que você pensava assim’”, conta Jelena. “E é isso a luta. Por trás das nossas ideias, das injustiças que a gente combate, há pessoas. Que precisam comer, dormir e sonhar. E isso precisa ser preservado”.

Foto: A ativista Jelena Dordevic durante atividade promovida pelo Fundo Brasil em 2019 ( Fundo Brasil/ Selmy Yassuda)

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