O brasileiro não entende como o racismo funciona no Brasil, diz historiadora
Estudiosa das relações raciais, Suzane Jardim enxerga nos protestos antirracistas das últimas semanas sinais de uma ruptura profunda
Rafael Ciscati
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Desde o assassinato do americano George Floyd, no final de maio, uma onda de manifestações de caráter antirracista correu por cidades do todo o mundo. No Brasil, a revolta se traduziu numa sequência de atos nos dias 31 e 7 de junho. Em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, e Belo Horizonte, os manifestantes marcharam contra o assassinato da população negra, contra o fascismo e em favor da democracia. Por aqui, a foto de Floyd se uniu à memória de duas mortes recentes: a do adolescente João Pedro Matos Pinto — morto em casa, durante uma operação policial no Rio de Janeiro — e a do menino Miguel Santana da Silva, que caiu do nono andar de um prédio enquanto estava sob os cuidados da patroa da mãe, empregada doméstica. Em faixas e cartazes, os manifestantes denunciaram o caráter racistas das duas perdas: ambos os garotos eram negros.
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Estudiosa das relações raciais, a historiadora Suzane Jardim observa nessa sequência de manifestações sinais de uma ruptura profunda, e que ultrapassa a indignação pelas mortes de Floyd, João Pedro e Miguel: “O que vemos, hoje, é resultado de anos de colonialismo”, afirma
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Segundo ela, a amplitude dos protestos — que ocorrem em meio a pandemia mais letal dos últimos 100 anos — é reflexo de uma gradual mudança de mentalidade. Quando vão à ruas, argumenta, as pessoas demonstram reconhecer os danos provocados pelo racismo e pelo colonialismo nos últimos 3 séculos.
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Na avaliação de Suzane, a quem queira compreender o caráter e os possíveis desdobramentos das manifestações, importa olhar “para onde dói mais”: para a vida das populações de favelas e para os movimentos sociais que surgem nesses ambientes; e para os movimentos que trabalham com pessoas privadas de liberdade e seus familiares: “Se a ideia é entender o centro desses protestos, sugiro ir a esses movimentos”.
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Brasil de Direitos: As manifestações que aconteceram pelo país nas duas últimas semanas se definiram como antirracistas, antifascistas e pró-democracia. Essas três bandeiras estão sempre associadas?
Suzane Jardim: Antirracismo e antifascismo são coisas intrinsecamente ligados. O antifascismo moderno se constrói em torno da luta contra supremacistas brancos na Europa pós-holocausto, que tentavam barrar a imigração de pessoas negras vindas do Caribe e de países africanos recém-independentes. A ligação do movimento antifascista com o antirracismo é intrínseca. A única questão que talvez cause algum desconforto é a defesa da democracia. E pode causar desconforto porque é preciso definir de qual democracia se está falando. Já há bastante tempo, setores do movimento negro questionam o que é essa democracia que vivemos. Porque essa é uma democracia de telão. Que, mesmo nos seus melhores tempos, nos governos mais progressistas, encarcerou e matou pessoas negras. Isso nunca parou, na história do nosso país. Então, há, de fato, um receio de que essas manifestações — motivadas pelas vidas negras que precisam importar— passem a defender a volta de uma falsa normalidade. No sentido de que agora a democracia está em risco, mas se voltar ao estágio de 5 anos atrás tudo estará bem. O movimento negro denuncia que, há cinco anos, não estava tudo bem.
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Pouco depois do assassinato do americano George Floyd, morto durante uma abordagem policial nos EUA, houve uma vasta mobilização nas redes sociais, que chegou ao Brasil. Para além do protesto que vai as ruas, essa mobilização digital tem potencial para operar mudanças reais?
Eu aprendi muito com manifestações online. Devo muito ao tempo que passei lendo posicionamentos na internet, entendendo outras lógicas. Hoje, me reconheço como abolicionista penal não porque um dia jogaram um livro na porta da minha casa. Mas porque eu acompanhei discussões online. Discussões que, por vezes, vinham simplificadas — e coube a mim me interessar, ir atrás e fazer disso a minha luta política. Acredito que há um potencial de mudança. Falar sobre um assunto tende a fazer com que as pessoas realmente aprendam alguma coisa, por pouco que seja. Nesse sentido, eu acho positivo. Passamos por décadas de omissões no Brasil. Em que a história negra não era falada, as manifestações negras não eram mostradas. Explicitá-las tende a aproximar as pessoas da causa. E pode ter um impacto positivo. Entretanto, esse comportamento de se posicionar politicamente pode se tornar, também, parte de uma performance política das redes. Foi assim durante blackout tuesday (no dia 2 de junho, uma manifestação nas redes sociais promoveu a publicação de quadros na cor preta, como forma de protesto) . Um monte de empresa se posicionou como antirracista nas mídias sociais, sem que isso tenha paralelo nas políticas corporativas. Gente fazendo post em preto simplesmente porque estava todo mundo fazendo isso. Um falar por falar, porque todo mundo está falando. A internet é um ótimo motor para aproximar as pessoas da discussão, e para unir pessoas. A maioria dos meus companheiros de luta eu conheci na rede. Mas ela também inclui uma dinâmica banalização.
Pessoas negras são mortas brutalmente todos os dias no Brasil e, nem sempre, provocam a mesma comoção entre brasileiros que a causada pela morte de Floyd. Uma morte nos EUA tem maior poder mobilizador?
Frequentemente, quando vou dar aulas, eu pergunto aos alunos quais foram os países no continente americano que receberam as maiores populações de escravizados. O primeiro lugar todo mundo acerta — o Brasil. Em segundo lugar, as pessoas são rápidas em apontar os EUA. Elas erram. Os EUAS aparecem em sexto lugar nessa lista. As pessoas têm dificuldade para entender que a França e a Holanda escravizaram pessoas nas Guianas. Não conseguem lembrar que a Espanha escravizou pessoas no restante da América latina. Para elas, o grande exemplo de escravismo sãos os EUA. Eu faço esse exercício para demonstrar como toda a nossa história racial foi construída em oposição a dos americanos. São de lá os grandes filmes sobre segregação racial. Estamos acostumas a nos indignar e emocionar com as histórias de linchamento, com Martin Luther King. A conclusão é sempre a mesma — a de que os EUA promoveram a segregação violenta da população negra e o Brasil não. Quando o George Floyd é assassinado nos EUA, é como se sua história fosse um ponto a mais dentro dessa comoção com a qual as pessoas já estão acostumadas, porque a nossa história fez com que fosse assim. As pessoas leem a notícia sobre a morte do Floyd e pensam na segregação racial amricana. Se algo semelhante acontece no Brasil, essas mesma pessoas se apressam a dizer que a questão é de classe, não de raça. Isso é reflexo de como o discurso da democracia racial se construiu no Brasil em oposição aos EUA.
O brasileiro tem dificuldade de entender como o racismo opera no Brasil – e de falar sobre isso?
Tem dificuldade para entender como o racismo se estrutura no país. E isso é geral. Mesmo setores da militância reproduzem um discurso que é povoado por referências americanas. Porque são essas as imagens que a gente recebe. É Angela Davis, é Panteras Negras, é Malcom X. Não lembramos dos nossos intelectuais e militantes. O Movimento Negro Unificado se formou em plena ditadura, depois da morte de um homem negro. Foi um dos primeiros a dizer que toda prisão é uma prisão política. Isso é muito sério e muito forte. Mas as pessoas não têm essa memória.
Protestos antirracistas aconteceram em diversas capitais, no brasil, EUA, Reino Unido. A amplitude dessas manifestações indica que elas podem provocar mudanças profundas?
Eu espero que sim. Todo o meu trabalho hoje, inclusive, é de mostrar como essas manifestações não são uma coisa que surgiu de maneira automática. Elas não surgem a partir da morte do George Floyd, ou da morte do João Pedro. O que vemos, hoje, é resultado de anos de colonialismo. É isso o racismo estrutural. A formação do Estado moderno, o desenvolvimento do capitalismo, toda a história dos últimos 300 anos, teve o racismo e a exploração de classes como pontos centrais. Hoje, mais que nunca, a gente percebe as pessoas entenderem e questionarem isso. Questionarem, inclusive, os símbolos disso que foram naturalizados ao nosso redor — é o que acontece com as estatuas de escravocratas, por exemplos, que foram destruídas durante protestos. Uma revolução não vem de um dia para o outro. É um processo de mudança de paradigma, um processo de mudança de mentalidade. Ninguém resolveu invadir a Bastilha de um dia para o outro. Os resquícios coloniais que sobrevivem na nossa sociedade estão mais evidentes. E as pessoas reagem indo para as ruas. Espero, e estou trabalhando no campo da esperança, que essa reação seja sinal de uma mudança de paradigma, e que ela não seja abafada. Porque é essa a tendência do capitalismo – tomar a revolta, transforma-la num fetiche e comercialização-la.
Se quisermos pensar sobre o significado das manifestações atuais, para onde devemos olhar?
Se a ideia é ir ao centro desses protestos, sugiro ir aos movimentos de favelas e aos movimentos que trabalham com cárcere. Os movimentos de cárcere trabalham com as populações mais precarizados e esquecidas. Eles ajudam a entender as bases dessa revolta. É preciso entender o que o pessoal de Paraisópolis está dizendo, ver o que o pessoal do Raull Santiago, da Buba Aguiar, no Rio de Janeiro, produz. Esse é um pessoal que trabalha com jornalismo, mas que está quase que 24h na rua, se expondo à Covid-19, distribuindo cestas básicas, dando informações, e oferecendo acolhimento às pessoas que não tiveram o direito de parar durante a pandemia. Estão fazendo, justamente, o trabalho que o Estado não faz.
Foto de topo: Mídia Ninja
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