O Carandiru ficava aqui: grupo realiza roteiro de memória pelo antigo presídio
Em 2002, a penitenciária do Carandiru foi demolida para dar lugar a um parque. Ativistas apontam que a transformação tenta apagar a memória do massacre que aconteceu ali
Rafael Ciscati
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Maurício Monteiro conta que pulou de alegria, no meio da rua, quando soube que o presídio do Carandiru tinha sido demolido. O ano era 2002, e Maurício se lembrava, com amargor, dos anos passados ali. “Morei no Carandiru dos 19 aos 35 anos”, conta. “Quando soube da demolição, pensei: para a detenção eu não volto mais”.
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A Casa de Detenção de São Paulo começou a ser construída na década de 1920, na zona Norte da capital paulista, e entrou para o imaginário nacional como símbolo da violência praticada no sistema penitenciário. Em 1992, foi cenário para o maior massacre já registrado em uma prisão no Brasil. Em outubro daquele ano, soldados da Polícia Militar (PM) paulista entraram pelos corredores do pavilhão nove disparando contra os presos. A intenção, segundo a polícia, era conter uma briga. Ao menos 111 pessoas morreram, de acordo com a estatística oficial (o número é questionado por sobreviventes e por organizações da sociedade civil. Algumas estimativas falam em quase 300 mortos). Entre 2013 e 2014, 74 agentes que participaram do massacre foram condenados: a Justiça concluiu que eles executaram detentos já rendidos. Eles seguem em liberdade.
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Maurício ainda “morava” no Carandiru quando tudo isso aconteceu. Diz que sobreviveu por sorte. Ao ouvir o barulho dos tiros, tentou se esconder na própria cela. Foi flagrado por um dos policiais. “O soldado apontou a arma para a minha cabeça e ia atirar, mas o chefe dele pediu que recuasse”.
Por tudo o que representava, a demolição do Carandiru parecia uma boa notícia. Nada disso impediu que Maurício se sentisse incomodado quando pisou, pela primeira vez, na construção que o sucedeu: o Parque da Juventude. Construído nos terrenos da antiga prisão, o espaço abriga uma biblioteca, amplo gramado e alguns equipamentos de lazer – como parquinho para crianças e quadras de esporte. Há também um colégio técnico estadual, instalado nos únicos dois pavilhões do presídio que ficaram de pé. Nos seus 240 mil metros quadrados, não há menção à antiga penitenciária.
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Da instituição prisional, sobraram duas celas, preservadas no andar térreo do colégio. Lá funciona o Espaço Memória Carandiru, uma espécie de museu que só recebe visitas mediante agendamento. Fica escondido: para encontrá-lo, é preciso atravessar o pátio da escola e entrar por uma porta discreta. Quem frequenta o Parque não nota sua existência e não há placas estimulando a visitação. “Esse espaço foi ressignificado, e não há mais nada aqui que dialogue com o passado”, diz Maurício. “Quando criou o Parque da Juventude, o Estado quis esquecer um crime cometido pelo próprio Estado”.
Vista aérea da Casa de Detenção de São Paulo. A imagem fica exposta no Espaço Memória Carandiru
Hoje formado em gestão ambiental, Maurício é fundador do Instituto Resgata Cidadão (Irec), uma organização que combate desigualdades promovendo atividades culturais. Há pelo menos dois anos, o grupo organiza visitas guiadas pelo Parque da Juventude. O objetivo é reverter o que os ativistas classificam como um processo deliberado de apagamento da memória. “Essa é uma história sensível. Mas é uma história que todos precisam conhecer”, diz Maurício.
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Costumeiramente, as visitas acontecem aos sábados. Numa tarde de final de junho, quando Brasil de Direitos acompanhou a atividade, participaram 27 pessoas. A maioria era de jovens e adolescentes nascidos depois da demolição do presídio. O roteiro dura pouco mais de duas horas. Percorre os terrenos do Parque e, quando possível, inclui o espaço de memória dentro do colégio (Maurício conta que nem sempre a entrada dos visitantes é autorizada). A atividade termina com um passeio pelas muralhas do que seria o Carandiru II — uma extensão, nunca construída, do presídio principal. Dela, restaram muros com mais de 10 metros de altura.
Enquanto o roteiro transcorre, a equipe do Irec retoma a história de construção e demolição do Carandiru, e tece críticas às políticas penitenciárias adotadas no Brasil. “O que queremos, com essa atividade, é evitar que a história se repita”, diz a historiadora Nádia Lima, uma das organizadoras do evento. Desde que o Carandiru foi demolido, o número de pessoas presas no Brasil mais que triplicou. Eram 239 mil presos em 2002, que se tornariam mais de 800 mil dali a 20 anos. Hoje, o país ocupa a terceira posição no ranking das maiores populações carcerárias do planeta. Nesses ambientes, casos de tortura e violência extrema se repetem: desde 2002, houve massacres em Rondônia, Maranhão, Rio Grande do Norte, Manaus, para citar alguns. “E há outros vários massacres silenciosos, que acontecem todos os dias” diz Helen Baum, também do Resgata Cidadão. “As epidemias de turberculose nos presídios, a comida estragada que faz as pessoas passarem mal. São massacres que passam despercebidos”.
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Nos últimos anos, além de promover os passeios, o grupo se empenhou em ampliar o acervo do Espaço de Memória. Ele conta com fotos e antigos apetrechos usados na prisão: facas artesanais produzidas pelos próprios detentos; um imenso caldeirão onde a comida era preparada; duas celas mobiliadas. Quando foi inaugurado, diz o grupo, não havia nenhuma referência ao massacre de 1992. “Nós é que trouxemos uma placa com os nomes dos 111 assassinados”, explica Maurício, apontando para um memorial em homenagem às vítimas.
O desenho atual do Parque da Juventude começou a ser pensado no final dos anos 1990. Na época, o governo paulista promoveu um concurso destinado a arquitetos e paisagistas. Seu edital fazia algumas exigências: o novo complexo deveria atender a usos públicos e institucionais; algumas das edificações do antigo presídio seriam mantidas; e o pavilhão 9, onde ocorreu o massacre, tinha de ir para o chão. Havia o desejo, entre organizações da sociedade civil, de manter o prédio e transformá-lo numa espécie de memorial. A ideia foi descartada. “O que se fez ali foi uma opção política pelo esquecimento”, diz a antropóloga Gabriela Carvalho.
Ao longo de 2019, Gabriela desenvolveu um trabalho de etnografia no Parque da Juventude. A intenção era entender como os frequentadores do espaço se relacionam com o passado violento do lugar. As conclusões foram publicadas no artigo “Carandiru e os espaços fraturados de memória”. Apontam que, de maneira geral, quem visita o Parque pouco se lembra do presídio. “As pessoas até sabem que ali existiu uma prisão, onde aconteceu um massacre. Mas o conhecimento não vai além disso. É quase uma anedota”, conta Gabriela. Antes de cursar antropologia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Gabriela foi aluna de museologia na escola técnica instalada no Parque. E lembra que, mesmo para os alunos da instituição, o Carandiru era uma história nebulosa.
Gabriela acredita que era possível seguir um caminho do meio, capaz de requalificar o espaço e, mesmo assim, respeitar a memória das pessoas mortas durante o massacre. “Esse deveria ser o único caminho possível, inclusive, considerando a gravidade das violações de direitos que aconteceram ali”. No Brasil, diz ela, há exemplos de iniciativas que souberam lidar com a memória de passados traumáticos sem recorrer a apagamentos. Caso do Memorial da Resistência, na própria cidade de São Paulo. O museu funciona no mesmo prédio que, até 1983, sediou o Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (DEOPS-SP), órgão de repressão da Ditadura Militar. Conta a história da resistência ao regime de exceção.
Na Bahia, para onde Gabriela se mudou para cursar um mestrado, existe o Parque Estadual de Canudos. Ele preserva a história da guerra ocorrida no final do século XIX, quando tropas do exército republicano mataram 20 mil sertanejos considerados monarquistas. “ O massacre aconteceu há quase 130 anos. Quem vai ao parque sai com a sensação de que Canudos foi ontem”, diz Gabriela.
Maurício e seus companheiros do Irec gostariam que o Carandiru tivesse trajetória parecida. Para eles, o resgate dessa memória traumática não serve apenas como alerta de erros a evitar. Ele oferece base para repensar políticas públicas, e questionar o modelo de segurança adotado no Brasil. “Como a gente vai planejar o futuro se esquecermos do passado?”, questiona Maurício. Antes de iniciar o passeio pelo antigo Carandiru, Nádia Lima, do Irec, pede que os participantes formem um grande círculo. “Qual a primeira palavra que vem à mente de vocês quando pensam nesse lugar?”, pergunta. A maioria fala em violência, massacre, morte. Maurício responde de pronto: “Cura e esperança”.
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