O dia em que todo mundo virou Guarani-Kaiowá
Como Tonico Benites fez as palavras de um líder indígena romper as fronteiras do Mato Grosso do Sul, e transformou uma tragédia local em uma causa na aldeia global da internet
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por Spensy Pimentel*
Quem já tinha ouvido falar da tragédia vivida pelos Guarani-Kaiowa de Mato Grosso do Sul antes de 2012? Dentre os que acompanham o noticiário sobre as lutas sociais com mais atenção, talvez alguns se lembrassem das notícias fartamente veiculadas na imprensa nos anos 90 a respeito da epidemia de suicídios que esse povo indígena vive há mais de três décadas.
Mas, certamente, uma parcela muito menor da população podia perceber que esse povo – o segundo mais numeroso do país, com 46,2 mil pessoas, segundo dados de 2013 – não só era vítima de uma grande tragédia, mas também protagonista orgulhoso de uma luta ferrenha, travada de diferentes formas nos últimos 500 anos. Na expressão mais recente dessa verdadeira guerra, os Guarani-Kaiowa organizam, desde o final dos anos 70, um movimento construído em torno das chamadas Aty Guasu (grandes assembleias), a fim de articular apoio mútuo a ações de resistência contra despejos e de recuperação de territórios dos quais dezenas de comunidades foram expulsas ao longo do século XX – muitas vezes, por iniciativa ou com apoio dos próprios órgãos oficiais de “proteção” aos indígenas.
Não foi à toa que a difusão de informações sobre as tragédias era muito mais ampla do que a percepção de que os Guarani-Kaiowa reagiam à opressão. O movimento Aty Guasu permaneceu praticamente clandestino até meados dos anos 90. Não é força de expressão: até o início dos anos 80, a Fundação Nacional do Índio (Funai) era diretamente controlada pelos militares, em função do potencial de geração de escândalo internacional que as opressões vividas pelos indígenas brasileiros haviam demonstrado no final dos anos 60, logo no início da ditadura militar. Por isso, mesmo após a redemocratização do país, o acesso de antropólogos e outros indigenistas às aldeias ainda era vigiado e, por vezes vetado, ao mesmo tempo em que as viagens de lideranças eram controladas, e muitas assembleias indígenas tinham que ocorrer de forma oculta. Entidades como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) já eram especialmente perseguidas.
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A rápida expansão das redes sociais nos últimos anos, e particularmente do Facebook no Brasil, sobretudo a partir de 2011, abriu novas oportunidades de comunicação livre. Antropólogos e o Cimi já colaboravam com a difusão de informações sobre os Guarani-Kaiowa desde a criação do movimento Aty Guasu, mas foram as possibilidades abertas pela nova era digital, nos últimos anos, que verdadeiramente projetaram esses indígenas à visibilidade que eles hoje ocupam.
Em outubro de 2012, a difusão de uma carta pública da comunidade guarani-kaiowa de Pyelito Kue, em Iguatemi (MS), foi o disparador para uma ampla onda de solidariedade a esse povo. Um fenômeno impressionante: em mais de 50 cidades do país e do exterior, grupos de apoiadores saíram às ruas expressando seu apoio aos Guarani-Kaiowa e pedindo que o governo brasileiro não permitisse o despejo dos indígenas do Pyelito Kue. Em paralelo, circularam diversos abaixo-assinados e até mesmo uma campanha virtual para que as pessoas mudassem seu sobrenome no facebook, passando a assinar elas mesmas como “Guarani-Kaiowa”. Em universidades e outros espaços, debates, aulas públicas e outros eventos de solidariedade aconteceram por todo o país.
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Claro que, para que se chegasse a esse ponto, muitas pessoas já trabalhavam desde os anos 70, fossem as centenas de lideranças indígenas que participam do movimento Aty Guasu, ou os muitos indigenistas, antropólogos, artistas, jornalistas e outros profissionais que deram apoio ao grupo ao longo dessas últimas décadas, coletando e divulgando informações sobre sua tragédia e sua luta, em reportagens, documentários, artigos, fotografias…
Mas, em meio a tudo isso, uma história muito especial e talvez pouco conhecida seja a do antropólogo kaiowa e ativista do movimento Aty Guasu Tonico Benites. Desde criança, Tonico cresceu em meio ao movimento de luta pela terra. Sua comunidade de origem, o Jaguapiré, em Tacuru (MS), foi uma das primeiras a serem recuperadas pelos Guarani-Kaiowa, tendo sido homologada em 1992. Ele acompanhou de perto todo esse processo, recentemente retratado no documentário “Martírio”, de Vincent Carelli. No filme, é possível conhecer, por exemplo, episódio de 1985, em que policiais militares, a mando de um político local, invadiram a comunidade, destruindo casas e espancando pessoas – muitas delas parentes de Tonico.
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Mais tarde, Tonico passou a lecionar na escola da comunidade e foi um dos pioneiros do movimento de professores guarani-kaiowa – importante força na demanda por políticas públicas voltadas a esses indígenas nos últimos anos. Ele cursou Pedagogia na então recém-criada Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), em Dourados. Foi nesse período, em 2003, que nos conhecemos – eu finalizava a pesquisa de mestrado sobre os suicídios entre os Guarani-Kaiowa, e as conversas que tivemos então foram cruciais para refinar minha compreensão sobre os sentimentos e atitudes dos jovens indígenas que terminam por cometer esse ato tão radical – mais de 1.100 dessas mortes já foram registradas entre os Guarani-Kaiowa desde o início dos anos 80, sendo grande parte das vítimas jovens.
Antropólogos que haviam atuado junto aos Guarani-Kaiowa desde os anos 70 e já conheciam Tonico desde que ele era só um menino foram importantes para perceber sua vocação e dar-lhe apoio em sua próxima transição: no Rio de Janeiro, ele cursou mestrado e doutorado em Antropologia, tornando-se o primeiro kaiowa com título de doutorado no país.
Depois de deixar meu trabalho em Brasília como jornalista, em 2008, para voltar a dedicar-me aos estudos em São Paulo, tive a grata surpresa de reencontrar Tonico em 2011. Agora, ambos fazíamos nossos trabalhos de campo para o doutorado em Antropologia em Mato Grosso do Sul.
Em 2012, uma grande mobilização – alimentada pelas redes sociais – levou pessoas às ruas, em apoio aos Guarani-Kaiowá (Foto: Agência Brasil)
Foi nesse período que Tonico e eu enfrentamos, em nossos trabalhos de campo, a necessidade não somente de buscar informação nas comunidades, mas também de denunciar o que víamos e o que nos contavam sobre o que se passava. Era um momento em que os ataques paramilitares contra os acampamentos guarani-kaiowa recrudesciam. Comunidades como as de Pyelito Kue, Ypo’i, Arroio Korá, Kurusu Amba, Apyka’i e tantas outras eram constantemente alvo de ameaças e de agressões que se tornavam parte inescapável de nossas pesquisas.
Recebendo apelos das lideranças indígenas para que levasse até o Ministério Público, a Funai e qualquer outra autoridade que pudesse lhes socorrer, Tonico frequentemente escrevia e-mails em que transcrevia as histórias que lhes relatavam, sobre ameaças e ataques às comunidades. Nessa atividade, seu talento de tradutor e intérprete de seu povo se destacava.
Foi a partir daí que surgiu o projeto apresentado ao Fundo Brasil de Direitos Humanos, elaborado com apoio do Cimi, entidade que, desde os anos 70, busca apoiar a divulgação de informações sobre as violações sofridas pelos Guarani-Kaiowa. A ação de Tonico, porém, tornou-se emblema de uma nova era, em que os próprios indígenas, munidos de celulares com câmeras e perfis em redes sociais, podem divulgar, eles mesmos, com suas próprias palavras, qualquer ameaça ou ataque que recebam, muitas vezes em tempo real. Utilizando os recursos do Fundo Brasil, ele visitava os acampamentos guarani-kaiowa, publicando na internet as fotos, relatos e pequenos vídeos para denunciar as mazelas que atingiam os indígenas.
E foi assim que Tonico, com apoio do Fundo Brasil, ajudou os Guarani-Kaiowa a fazerem história, tornando-se ícones da nova era da internet no Brasil. Porque foi no perfil do Facebook do movimento Aty Guasu, do qual ele era um dos principais administradores, que se publicou originalmente a carta do Pyelito, no início de outubro de 2012:
“Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação/extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Assim, é para decretar a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e para enterrar-nos todos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem morto e sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo de modo acelerado. (…) Como um povo nativo/indígena histórico, decidimos meramente em ser mortos coletivamente aqui. Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime”
Naquela ocasião, a jornalista Eliane Brum comparou a carta do Pyelito à famosa carta fundadora do escrivão português em 1500: “Se a carta de Pero Vaz de Caminha marca o nascimento do Brasil pela palavra escrita, é interessante pensar o que marca a carta dos Guaranis Caiovás mais de 500 anos depois. Na carta-fundadora, é o invasor/colonizador/conquistador/estrangeiro quem estranha e olha para os índios, para sua cultura e para sua terra. Na dos Guaranis Caiovás, são os índios que olham para nós”.
Com o apoio do Fundo, Tonico conseguiu levar um pouco do olhar indígena sobre essa tragédia que já dura décadas. Com muito pouco, foi possível operar uma pequena revolução na percepção brasileira sobre o que acontece ali. Os problemas dos Guarani-Kaiowa seguem sem solução – mas já é um grande passo que não se possa mais atacar ou ameaçar um acampamento indígena sem causar um grande barulho na sociedade civil brasileira e internacional. Seja no front de MS ou na internet, onde milhares de pessoas hoje atuam para difundir informações e pressionar as autoridades, a luta continua.
*Texto originalmente publicado na revista em comemoração aos 10 anos do Fundo Brasil
Foto de abertura: Lideranças indígenas protocolam, no STF, memorial sobre a situação de vulnerabilidade dos Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul (Mídia Ninja)
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