No dia 25 de julho, foi comemorado o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. A data surgiu a partir do primeiro encontro de mulheres negras latinas e caribenhas, realizado em São Domingo, capital da República Dominicana, no ano de 1992. O encontro teve como objetivo discutir sobre racismo e machismo, bem como formas de combatê-los.
Segundo estimativa da associação Mujeres Afro, mais de 200 milhões de pessoas se identificam como afrodescendentes¹ nos países da América Latina e Caribe. Só no Brasil, atualmente mais de 19 milhões de pessoas se identificam como pretas e quase 90 milhões como pardas.
A discriminação e desigualdade por motivos étnico-raciais ocorrem na América Latina e Caribe desde os tempos de colonização, e os indicadores revelam que essas questões ainda não foram superadas.
De acordo com o relatório “Situación de las personas afrodescendientes en América Latina y desafíos de políticas para la garantía de sus derechos”, organizado pela CEPAL em parceria com outras instituições, nos países latino-americanos e caribenhos há maior incidência de pobreza entre pessoas afrodescendentes, além delas terem maiores dificuldades para acessar políticas públicas de saúde e educação, assim como difícil acesso ou inserção precarizada no mercado de trabalho. No Brasil, além das desigualdades socioeconômicas, a população negra também sofre com a violência policial e a seletividade penal.
Olhando para o contexto brasileiro, a questão racial está fortemente relacionada ao encarceramento em massa. Segundo o Infopen 2017, cerca de 64% da população prisional do país é negra, enquanto entre a população geral esse índice é de 56%. Em relação ao encarceramento feminino, a política de drogas adotada desde 2006 foi responsável por criminalizar majoritariamente mulheres negras.
Delitos relacionados ao tráfico de drogas também constituem o principal motivo para o encarceramento de mulheres migrantes, pelo menos no estado de São Paulo, região onde o ITTC concentra suas atividades.
Consideramos que as mulheres migrantes exercem a função de mulas de tráfico por estarem em situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica em seus países de origem, além de muitas serem enganadas para desempenhar tal atividade. Não por acaso, a maioria das mulheres atendidas pelo ITTC dentro do sistema prisional é de origem latino-americana e africana. Entendemos que as situações de vulnerabilidade podem ser intensificadas conforme a região, os contextos político e socioeconômico e os marcadores sociais da diferença, entre eles a raça/etnia, daí a importância de incluirmos este tema em nossas análises.
LIDANDO COM AS CATEGORIAS ÉTNICOS RACIAIS EM CONTEXTOS TRANSNACIONAIS
O primeiro desafio para sistematizar as informações a respeito de raça/etnia entre mulheres migrantes em conflito com a lei é a variedade de categorias. Ainda que tenhamos recortado mulheres de origem latino-americana e caribenha, isto é, de regiões que compartilham um passado colonial e escravista, os termos adotados em cada país podem divergir bastante e as categorias adotadas pelo IBGE muitas vezes não fazem sentido para as mulheres.
Entre as 351 mulheres latino-americanas e caribenhas, 44,4% delas não se identificaram com nenhuma das categorias do IBGE. Entre as 195 que se identificam, 46% se declararam brancas e 45% negras (soma de pretas e pardas). |
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Consideramos que os critérios do IBGE são pouco representativos para falar de mulheres migrantes, daí a importância de manter uma pergunta aberta para que as mulheres possam falar como se identificam em termos de cor/raça/etnia. Com este critério, é possível identificar que cerca de 1/3 das mulheres latino-americanas e caribenhas se autodeclaram morenas. |
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Dentre as categorias citadas na autodeclaração, o termo “trigueña” é o menos familiar no vocabulário brasileiro. Esta categoria pode assumir significados variados conforme o país. Em países como Porto Rico e República Dominicana, por exemplo, o termo “trigueño” pode ser usado para se referir às pessoas negras. Já no Peru, por outro lado, a categoria geralmente se refere a pessoas com ascendência indígena e europeia, também identificadas como mestiças.
A maioria das mulheres latino-americanas e caribenhas que tiveram questionários aplicados no período de 2015 a 2019 são bolivianas, seguidas por colombianas, venezuelanas, peruanas e paraguaias, respectivamente. |
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A tabela abaixo indica como as mulheres de nacionalidades mais recorrentes se declaram em termos de raça/cor/etnia. A maioria das mulheres bolivianas se identificam como morenas, assim como as colombianas, que além de morenas também costumam se declarar como trigueñas. Já as venezuelanas costumam se identificar como brancas ou morenas. Por fim, as peruanas e paraguaias costumam se identificar como trigueñas, e em segundo lugar aparecem aquelas que se declaram brancas. |
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Ainda que as categorias acima sejam mais representativas do que os critérios do IBGE, a variedade de categorias dificulta avaliar eventuais diferenças nos indicadores socioeconômicos entre mulheres brancas e não brancas. Tomando como referência os ensinamentos do sociólogo Carlos Hasenbalg, entendemos que os atributos étnico-raciais são determinantes na estruturação de oportunidades sociais e distribuição de bens materiais e simbólicos, fazendo com que pessoas não brancas, em especial negras, sejam sobrerrepresentadas nas classes mais desfavorecidas e subrepresentadas nas classes privilegiadas.
Deste modo, para analisar variáveis de teor socioeconômico e outros marcadores sociais da diferença, optamos por dividir as mulheres latino-americanas e caribenhas em dois grupos, um composto pela soma de mulheres brancas e amarelas², e outro composto por mulheres não brancas. Para a categoria não branca incluímos aquelas que se declararam morenas, trigueñas, pardas, mestiças, mulatas, negras, pretas, indígenas e com a pele castanha, canela, marrom e café.
Termos como mulata, mestiça, negra, preta e parda são mais recorrentes no vocabulário brasileiro, fazendo com que a inclusão dessas categorias no grupo de não brancas fosse mais intuitiva. Por outro lado, decidimos incluir os termos “morena” e “trigueña” no grupo de não brancas pois identificamos que, ainda que poucas mulheres morenas e trigueñas pouco se identifiquem com os critérios do IBGE, quando o fazem, costumam optar pela categoria “parda”
A categoria “não branca” também pode ser justificada a partir do referencial teórico de Lélia Gonzalez. Segundo a autora, na América Latina existe um sistema hierárquico em que os homens brancos ficam no topo, enquanto mulheres “não brancas”, em sua maioria negras e indígenas, são classificadas como a negação do branco, sendo a base da hierarquia do sistema patriarcal e racista, e consequentemente vítimas de diversas formas opressão.
Assim, a partir da nova classificação é possível identificar que a maioria das mulheres latino-americanas e caribenhas entrevistadas nos últimos anos pertencem ao grupo de “não brancas”. Consideramos esse dado um indício de que, além das violações de gênero, muitas dessas mulheres também podem sofrer com a estratificação étnico-racial em seus países de origem, o que agrava sua situação de vulnerabilidade e contribui para que elas exerçam atividades de risco para obter renda, como o transporte de drogas. |
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² Entendemos que pessoas que se identificam como amarelas e/ou asiáticas também são alvo de discriminação e preconceito. Entretanto, em termos de estruturação de oportunidade e distribuição de riquezas no contexto latino-americano, este grupo não costuma ser excluído da mesma forma que grupos com ascencêndica indígena e/ou africana. Além disso, a quantidade de mulheres que se identificam como “amarelas” é bastante reduzida (5 casos), portanto suas respostas não causam nenhum viés nas respostas de mulheres brancas (76 casos). |
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A partir do levantamento feito até aqui, ressaltamos a importância de compreender as especificidades e as realidades locais das mulheres migrantes que são presas em território brasileiro. Ainda que sejam dados exploratórios, há indícios de que, pelo menos na região latino-americana, mulheres não brancas são alvo privilegiado das redes internacionais para exercer funções de maior risco e baixa remuneração na cadeia do tráfico, como o transporte internacional de drogas.
Muito provavelmente elas se tornam alvo privilegiado por estarem em situação de extrema vulnerabilidade em seus países de origem. Isso não quer dizer que mulheres brancas também não estejam em situação de vulnerabilidade e possam exercer funções semelhantes, mas, conforme verifica-se pelos dados apresentados, isso parece acontecer com uma recorrência muito menor.
Neste sentido, é fundamental que investigações a respeito do impacto de políticas de drogas sobre grupos vulneráveis no Brasil e no mundo levem em consideração não só especificidades de gênero, mas também de raça/cor/etnia. |
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