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Garantia do Estado de Direito

As polícias brasileiras são organizações rígidas. Segundo críticos, privilegiam o confronto à investigação. Para eles, é preciso livro-las de sua inspiração militar

O que é: desmilitarização das polícias

Garantia do Estado de Direito

O que é: desmilitarização das polícias

As polícias brasileiras são organizações rígidas. Segundo críticos, privilegiam o confronto à investigação. Para eles, é preciso livro-las de sua inspiração militar

Escrito em 16 de Julho 2020 por
Rafael Ciscati

A Constituição brasileira define que todos os estados do país devem contar com duas forças policiais sob sua administração: as polícias civis e as militares. Surgidas ainda no século XIX, as PMs brasileiras foram reinventadas pela Carta. Segundo o texto constitucional, cabe a elas cuidar do policiamento ostensivo: aquele feito por policiais fardados, à vista da população. Ficou estabelecida, também, ao menos uma restrição: as PMs estão impedidas de conduzir investigações. As prisões feitas por policiais militares, portanto, devem ser feitas em flagrante.

No jargão da segurança pública, elas não se encarregam  do “ciclo completo da polícia”. Há ainda uma última característica essencial: as polícias militares são forças reservas do exército, que pode indicar seus comandantes gerais. Sua estrutura hierárquica e disciplinar emula a das forças armadas. É rígida e caracterizada pela centralização das decisões.

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Já de saída, esse desenho institucional foi criticado. “Na prática, as polícias militares são pequenos exércitos desviados de função” afirma o antropólogo Luiz Eduardo Soares. Autor do célebre Elite da Tropa (que inspirou o filme de José Padilha), Soares foi secretário nacional de Segurança Pública durante o primeiro governo Lula, de 2003 a 2004. Seu último livro, Desmilitarizar (companhia das letras, 2019), reflete sobre que caminhos a segurança pública no Brasil poderia seguir.

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Segundo ele, a forma como as polícias militares brasileiras estão organizadas é única no mundo. Somente elas não conduzem investigações.É também um modelo ineficiente, que não garante segurança à população ou aos policiais.

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Nos últimos 30 anos, o debate sobre como o trabalho das polícias deve ser orientado ganhou maior ou menor relevo conforme avançavam as estatísticas associadas à letalidade policial. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que, a cada 100 homicídios registrados no país em 2018, 11 foram cometidos por policiais. Em números absolutos, as polícias brasileiras estão entre  as que mais matam no mundo — mais de 6 mil mortes em 2018. São, também, as que mais morrem: 343 policiais foram assassinados naquele mesmo ano.

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Há um consenso, entre especialistas, de que não existe uma solução única para o problema. Muitos, no entanto, argumentam que, para avançar, é preciso desmilitarizar as estruturas policiais. Mas, afinal, o que significa “desmilitarização”?


O conceito


Soares  responde a essa questão levantando uma segunda pergunta: “Qual é a melhor forma de organização?”, indaga. “A melhor forma de organização é aquela que atende, com maior eficiência, aos objetivos de uma instituição”.

A  rigidez hierárquica, diz ele, é adequada ao trabalho das forças armadas. Responsáveis pela defesa nacional em caso de agressões por um inimigo externo, elas têm de reagir com celeridade. No geral, têm também um alvo claro, um inimigo bem definido a quem combater.

Não é essa a função das polícias. “As polícias, civis ou militares, existem para evitar violações de direitos”, afirma. Seu objetivo central é o de garantir segurança, e não o estar prontas para o combate armado. Nesse contexto, desmilitarização significa rever a forma como as polícias são organizadas, de modo a que estejam prontas para prevenir crimes — e não para travar uma guerra. Significa "a reestruturação radical da policia ostensiva, o corte de sua ligação com o exército, e o cumprimento do cilco completo por cada instituição policial".

Segundo Soares, a estrutura rígida das polícias gera uma série de problemas. Em todo o país, as polícias militares são aquelas com o efetivo mais numeroso. Em parte por isso, são cobradas a ser produtivas. “E as PMs interpretam essa cobrança por produtividade como uma cobrança por mais prisões”, afirma o antropólogo. Como não podem investigar, os policiais prendem suspeitos em flagrante. Na maioria dos casos, sob a acusação de tráfico de drogas. “Essa atuação contra o varejo das drogas não torna as cidades mais seguras”, diz Soares. E é uma das causas da imensa população carcerária brasileira, a terceira maior do mundo.

A lógica militar também torna as polícias propensas a grandes operações, como as realizadas em favelas e periferias. Não raro, elas resultam na morte de jovens negros e pobres. “Lança-se o policial numa eterna guerra às drogas, em que ele tem autorização para matar”, afirma.

No modelo defendido por Soares, o policial que vai as ruas deveria ser capaz de atuar como uma espécie de gestor local da segurança pública. Ele seria capaz de  manter diálogos com a população da região e com o governo, de modo a diagnosticar quais os principais problemas de segurança daquela comunidade. E trabalharia em rede: assinalando, para a prefeitura, que regiões precisam de investimentos em iluminação pública, por exemplo. Seria um trabalho baseado no diálogo e na investigação. E quer exigiria um novo perfil de policial, com maior investimento em formação, e maiores salários.


Desmilitarizar significa acabar com as PMs?


Não exatamente. A lógica militar não é exclusiva das PMS. “No Rio de Janeiro, a Polícia Civil tem caveirão”, lembra o sociólogo Ignácio Cano, especialista em segurança pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).  Uma análise da Rede de Observatórios da Segurança, publicada em maio deste ano, destacou como a polícia civil do Rio de Janeiro abandona, continuamente, atividades de investigação— para privilegiar operações de confronto contra o tráfico de drogas, semelhantes às conduzidas pelas PMs. Em maio deste ano, o adolescente João Pedro Mattos Pinto foi morto durante uma operação conjunta da Polícia Federal e da  Polícia Civil em São Gonçalo, região metropolitana do Rio. Na ocasião, João Pedro jogava video-game na casa dos primos quando foi baleado. “De nada adianta por fim às polícias militares se as polícias civis se orientarem pela mesma lógica de confronto” diz Cano.

Segundo ele, é importante ressaltar que defender a desmilitarização não significa, simplesmente, pedir o fim da Polícia Militar. “Isso só coloca a PM na defensiva, porque os policiais se sentem ameaçadas. E, certamente, não é a resolução dos problemas”, afirma. “Não é a militarização da estrutura que faz a grande diferença, mas a militarização da estratégia, das táticas, da própria doutrina”, avalia.

Foto de topo: Mídia Ninja

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