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O que é transição justa? Que bom que você perguntou!

A escalada da crise climática torna urgente mudar a maneira como produzimos energia. Que bom que você perguntou! consulta ativistas para entender como fazer essa transição sem prejudicar trabalhadores e comunidades tradicionais

Rafael Ciscati

8 min

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O historiador João Joventino do Nascimento, de 51 anos, leva no nome o lugar onde nasceu: todos o conhecem como João do Cumbe, em referência ao quilombo no litoral do Ceará.

Localizado há cerca de 180 km da capital, Fortaleza, o Cumbe é uma comunidade pesqueira fundada no século XVIII por pessoas que fugiam da escravidão.  Sua localização é estratégica: próximo ao rio Jaguaribe, um dos principais do estado; a poucos metros da praia; e ao lado de um mangue, onde os quilombolas pescam aratu (uma espécie de caranguejo) e camarão.

João Nasceu nos anos 1970. Nas suas memórias de infância, o Quilombo do Cumbe era um verdadeiro paraíso. “Tudo de que a gente precisava, tinha aqui no território”, conta ele, se referindo à abundância de água, frutos e peixes do Cumbe.

Por isso mesmo, foi grande o susto que João levou enquanto ouvia rádio, certo dia de 2005. Era hora do almoço, e o locutor anunciou que, nas dunas do Cumbe, iriam construir um parque eólico. “Fui em direção à praia e, do alto de uma duna, vi uma movimentação de carros e pessoas”, lembra João. No terreno, foram erguidos 67 aerogeradores: imensos postes, no topo dos quais há uma hélice que gira com a força do vento para produzir eletricidade. Ninguém  falou com os quilombolas.

Os quilombolas do Cumbe contam que, para realizar a obra, a empresa responsável pelo parque eólico aterrou dunas e destruiu sítios arqueológicos. Mais que isso: uma vez erguidos os aerogeradores, foi instalada uma cerca ao redor deles. O obstáculo barrou o caminho entre os quilombolas e a praia. O Cumbe, uma comunidade pesqueira, perdeu o acesso ao mar. 

Ao não consultar a comunidade quilombola, afirma João, a empresa responsável pela obra descumpriu uma obrigação descrita na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Trata-se de um tratado internacional, de que o Brasil é signatário, e que diz que comunidades tradicionais — como a do Cumbe— têm direito à “consulta prévia, livre e informada” acerca de empreendimentos que afetem seus territórios. Hoje, depois de muita briga, os quilombolas conseguiram retomar o acesso à praia, por força de uma decisão judicial. Mas, nos cálculos de João, o parque eólico construído à revelia da comunidade ocupou metade do território do quilombo.

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O que aconteceu no Cumbe foi que, sem saber, os quilombolas se viram no meio da corrida pela transição energética.

Histórias semelhantes se repetem em outras comunidades tradicionais espalhadas pelo Brasil. Pressionadas por empreendimentos que tomam parte de seus territórios, essas comunidades cobram uma transição justa.

 

Mas, o que isso tudo significa?

É esse o tema do terceiro episódio da nova temporada da série Que bom que você perguntou! Ao longo de três vídeos, a equipe da Brasil de Direitos conversa com pesquisadores, defensoras e defensores dos direitos humanos para esmiuçar o significado de termos e conceitos em voga no debate público.

Essa é a quarta temporada da série, criada em 2021. No primeiro vídeo, falamos sobre como é a recepção, no Brasil, às pessoas que solicitam refúgio no país. No segundo, conversamos sobre por que é tão difícil prevenir a violência contra a mulher. Nesse terceiro episódio, a Que bom que você perguntou! se debruça sobre o significado de “transição justa”. 

 

O que significa transição justa

A ideia da transição energética, em princípio, é positiva e urgente: desde o século XIX, a maior parte da humanidade produz energia (que ilumina casas ou move carros) a partir da queima de combustíveis fósseis. Mais comumente, petróleo, gás natural e carvão mineral. Substâncias que, quando queimadas, liberam para a atmosfera grandes quantidades de gás carbônico. 

Ao longo dos anos, isso virou um imenso problema: quanto mais gás carbônico na atmosfera, mais quente o planeta fica. Hoje, os cientistas estimam que a Terra está 1,2 ºC mais quente que em períodos pré-industriais. Esse aumento na temperatura média desencadeou uma crise climática que provoca secas em certas regiões e inundações em outras. E que, no limite, ameaça a vida no planeta.

Hoje sabemos que é importante mudar a maneira como produzimos energia. Substituir os combustíveis fósseis por fontes renováveis e menos poluentes: como a energia hidrelétrica, eólica e solar. 

Trata-se de fontes de energia que emitem menos gases de efeito estufa. Não quer dizer, no entanto, que sejam inofensivas.  “A gente vê que os projetos que se pretendem como de energia limpa reproduzem os mesmos padrões que outros projetos extrativistas, como de mineração”, diz  Melisanda Trentin. 

Coordenadora da ONG Justiça Global, Melisanda acompanha o desenvolvimento de projetos de energia renovável por todo o país. Acompanha, também, a forma como sua implementação, muitas vezes, desrespeita direitos. Caso dos grandes projetos de hidroeletricidade, por exemplo. Não raro, eles implicam no deslocamento de populações locais. “É preciso que a implementação desses projetos respeite os direitos humanos”, afirma. 

É por isso que, hoje, fala-se na necessidade de empreendermos uma “transição justa”. Esse conceito surgiu nos EUA, por volta da década de 1980. De saída, foi abraçado por funcionários de empresas petrolíferas. Na época, novas legislações, dedicadas a combater a emissão de poluentes, tinham potencial para provocar demissões nesse setor. Os trabalhadores, passaram a exigir uma transição justa: que combatesse a poluição, mas garantisse empregos dignos para todos. 

Com o tempo, o conceito se expandiu. Em países do Sul Global, como o Brasil, ele passou a incluir as demandas de populações que foram prejudicadas por empreendimentos de energia renovável. “O conceito diz justamente isso: devemos colocar as pessoas no centro dos debates. Parar de discutir só carbono, ou quantos dólares serão investidos. E falar sobre como as pessoas podem ser beneficiadas por essa transição energética”, diz a jornalista Cristina Amorim, do Climainfo.

Ao longo de 2023, Cristina participou de uma articulação chamada Nordeste Potência. O grupo é formado por ambientalistas, advogados e representantes de populações tradicionais. No começo do ano, lançou um documento chamado “Salvaguardas Ambientais para energia renovável”. Ele detalha medidas que podem ser adotadas por empresas de energia eólica de modo a reduzir o impacto negativo de seus empreendimentos.  “É possível mudar a maneira como a gente produz energia e combater a desigualdade social. E gerar oportunidades locais. Incluir mais mulheres e populações que costumam ser deixadas de lado”, diz Cristina. 

No quilombo do Cumbe, a comunidade já não acha que, um dia, os aerogeradores irão desaparecer. Hoje, eles cobram que a CPFL Renováveis, responsável pela administração das instalações, sente-se para conversar com os quilombolas. A ideia é que, juntos, tracem um plano para mitigar impactos. 

Procurada pela reportagem, a companhia ressaltou que a implantação do parque passou por processos de licenciamento ambiental. E que, ao longo dos últimos anos, promoveu iniciativas em benefício da comunidade quilombola, como a construção de um museu. Reproduzimos a nota da CPFL Renováveis no final deste texto. 

 

Quarta temporada

Voltados a público amplo, todos os vídeos da série Que bom que você perguntou! podem ser republicados e compartilhados livremente. Basta citar os créditos. Com eles, a Brasil de Direitos tenta contribuir com a construção de uma sociedade mais plural e bem informada.

A primeira temporada da série foi ao ar em 2021. Desde então, foram lançados 12 vídeos que discutem assuntos diversos: de racismo estrutural ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Assista aos demais vídeos aqui!

 

Nota da CPFL Renováveis

“A CPFL Renováveis informa que estudos do local foram submetidos à análise do órgão ambiental competente, o qual emitiu a licença de implantação e operação com as condicionantes de monitoramento de impacto, as quais a empresa segue rigorosamente. Além disso, o projeto está devidamente licenciado e todas as licenças foram emitidas respeitando os requisitos legais e regulamentares exigidos.

É importante destacar que diversas ações e projetos sociais foram implementados pela CPFL Renováveis na comunidade do Cumbe em Aracati/CE ao longo dos últimos anos. Entre eles, a construção do Museu Arqueológico e Comunitário, para permitir o repatriamento de vestígios arqueológicos da região; parcerias com importantes instituições como o SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), destacando os projetos recentes como a capacitação profissional, com o objetivo de fortalecer a mão de obra local e, consequentemente, aumentar a participação local no mercado de trabalho, onde foram ofertados diversos cursos para a população local como culinária e corte/costura.”

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