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O sistema de justiça protege policiais que matam, diz pesquisadora

Na avaliação de Poliana Ferreira, sistema de justiça é organizado para não responsabilizar agentes que matam civis. Há falha legais, e problemas culturais.

Rafael Ciscati

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No livro  “Justiça e Letalidade Policial: responsabilização jurídica e imunização da polícia que mata”, a jurista Poliana Ferreira conta uma história curiosa. A obra, lançada no final de 2021, narra o caso de um policial militar que, num acesso de raiva, mata um civil. O caso é enviado ao tribunal do júri e, apesar de o policial ter confessado o crime, os jurados decidem absolver o agente. Segundo Poliana, esse é um roteiro recorrente. “É comum que policiais que matam civis sejam absolvidos” diz ela nessa entrevista a Brasil de Direitos. “O sistema de justiça está organizado para não responsabilizar os agentes”

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Na avaliação de Poliana, existe uma cultura segundo a qual o policial que mata o faz “para proteger a sociedade”.  Diante disso, mesmo provas contundentes perdem valor. O problema é grande para um país que tem uma das polícias que mais mata — e mais morre — em todo mundo. E que tem, diante de si, o desafio de criar mecanismos para diminuir a letalidade policial.

Brasil de Direitos: É comum que policiais que matam civis sejam absolvidos?

Poliana Ferreira: É muito comum. Mais comum ainda, é não ter processo propriamente dito. Para avançar nessa discussão, há um nó importante — a ausência de dados. O sistema está blindado para a produção e divulgação de dados dos desfechos dos processos de responsabilização. Não conseguimos produzir um balanço de modo a avaliar como o sistema de justiça se comporta. Não sabemos quantos policiais foram condenados ou quantos processos foram arquivados, por exemplo. Esse é um primeiro problema: não dá para avaliar como o sistema atua, porque o Estado se blinda.

Nos casos em que o processo não é arquivado, o policial militar que mata é sempre julgado pelo tribunal do júri?

Até 1996, todos os casos de homicídio provocados por policiais militares eram julgados pela justiça militar. A sociedade civil percebeu que esse era um procedimento inadequado: a maioria dos processos era arquivada ou resultava em absolvição. A corporação se protegia. Em 1996, foi promulgada a Lei Bicudo. Ela definiu que os casos de homicídio doloso provocados por policiais passavam à competência da justiça comum. Passaram a ser atribuição do Tribunal do Júri. Mas esse roteiro depende de como o caso é lido nos primeiros movimentos institucionais de responsabilização. Quando um policial mata, sabemos que o resultado foi a morte de alguém. Mas o ato pode ser lido de maneiras diferentes. Se for lido como um homicídio culposo — quando não há a intenção de matar —, o processo pode pegar a trilha da justiça militar. Se for lido como homicídio doloso contra um civil, o caminho natural é o tribunal do júri.

E quem faz essa primeira leitura? Quem avalia se houve ou não intenção de matar?

Em tese, é o Ministério Público. Mas há alguns conflitos institucionais importantes que interferem nessa leitura. Do ponto de vista legal, parece muito simples observar e ver se o policial agiu com dolo ou se matou por negligencia, por um erro. No fundo, não é tão simples assim. O sistema de justiça brasileiro é assombrado por uma discussão: a de quem deve começar uma investigação. Não é raro que, em casos de mortes provocadas por PMs, a própria polícia militar abra um inquérito, e faça as primeiras apurações de modo a conduzir o caso para  a Justiça Militar. Isso permite que colegas do PM que matou circulem pela cena do crime já nos momentos iniciais da apuração. São momentos cruciais, quando são coletados materiais que poderão ser considerados provas em um eventual processo. Elementos que podem elucidar se houve ou não confronto, por exemplo. Os conflitos que ocorrem no começo da apuração podem determinar se o caso vai para a justiça comum ou para  a justiça militar.

Como funciona o tribunal do juri?

Se a abordagem policial com resultado de morte for lida como homicídio doloso contra civil, o caminho natural é que o Ministério Público apresente uma denúncia. Nesses casos, o julgamento é feito por um conselho de sentença, formado por sete pessoas. Elas apontam se o policial cometeu ou não um crime. Após o julgamento, pode haver recursos. Qualquer um dos lados pode discordar do resultado. E, aí, quem entra em cena é o Tribunal de Justiça (TJ), para onde o caso é encaminhado, onde o recurso é julgado pelos desembargadores.

No seu livro, você narra o caso de um policial que confessou ter matado um civil num momento de raiva. Ele foi absolvido, apesar de existir muitas provas contra ele. Por que isso acontece?

O que percebemos em casos assim é que a palavra do policial tem um valor importante nos processos. Os principais argumentos giram em torno da legítima defesa. O policial afirma que atirou porque a outra pessoa estava armada, porque houve confronto e o agressor precisava ser abatido para proteger a vida do policial ou de terceiros. O jurado já chega ao tribunal com essa inscrição: a de que o policial cumpria o dever legal de proteger a si mesmo e à sociedade. As pessoas já estão pré-dispostas a acreditar nisso. Não basta estar no processo que a pessoa morta recebeu um tiro na nuca, que há sinais de execução. O sistema de justiça está organizado para conduzir à não responsabilização. A prova, no fim, acaba tendo pouquíssimo valor.

Existe uma cultura que conduz à não-responsabilização dos policiais?

Existe. No caso do júri, estamos falando de pessoas que assistem na televisão que “bandido bom é bandido morto”.  Além disso, é preciso desfazer o mito de que o júri é formado por “cidadãos comuns”.  Em geral, os jurados são pessoas que têm uma profissão, têm emprego, têm renda.  Elas podem faltar a um dia de trabalho, para acompanhar o julgamento, porque  são funcionários públicos ou empregadores. É raro que um desempregado posso sentar para ser jurado.  A pessoas tem que estar em dia com suas obrigações eleitorais, e  não pode ter antecedentes criminais. Todo esse conjunto de exigências elimina uma parcela da população,  sobretudo da população negra, que poderia julgar seus semelhantes,  mas é eliminada à priori. Há um problema adicional: quando os homicídios praticados por policiais passaram a ser enviados ao júri, a sociedade comemorou. Foi um avanço importante. Mas os policiais continuam a ser absolvidos pelos jurados. O problema é  que o jurado não precisa justificar sua decisão. O júri não produz argumentos escritos. Por causa disso, não conseguimos ter acesso a seu raciocínio lógico. Criou-se, assim, um novo mecanismo para blindagem dos policiais.

Então, a mudança introduzida pelo Lei Bicudo não trouxe benefícios?

Quando essa lei foi promulgada, a sociedade observava uma sequência de episódios de violência policial. No início dos anos 1990, houve o massacre do Carandiru, em São Paulo, por exemplo. A sociedade decidiu que policial não podia julgar policial. Foi um movimento acertado. Porque, além do massacre propriamente dito, havia o segundo massacre, da não responsabilização. Ganhamos em transparência: hoje, temos acesso aos processos, os polciais são julgados por outros cidadão, e qualquer pessoa pode sentar no tribunal para acompanhar o julgamento. Foi um avanço, mas não podemos parar por aí. Porque os massacre continuam. Juristas e sociedade civil precisam trabalhar para pensar novos caminhos.

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