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Para combater o feminicídio, eduque os homens

No combate à violência contra a mulher, a educação - dos meninos inclusive - tem lugar central. Governo precisa investir em iniciativas que questionem bases machistas da cultura brasileira. 

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Por Jolúzia Batista, do Cfemea

(em depoimento a Rafael Ciscati)

 

Em 2023, o Brasil se tornou um lugar mais perigoso para meninas e mulheres. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e mostram que, ao longo do ano passado, todas as formas de violência contra a mulher se agravaram: os casos de violência doméstica aumentaram 9,8%; os de estupro, 6,5%; os feminicídios — quando uma mulher é assassinada simplesmente por ser mulher—  0,8%. 

Quem acompanha esse cenário sabe que esses números são lamentáveis, mas não são, propriamente, uma surpresa. Basta analisar as edições anteriores do mesmo Anuário para concluir que, ano após anos, a notícia se repete. 

Os dados expressam, numericamente, algo que sabemos há bastante tempo: há, no Brasil, uma investida conservadora contra a figura da mulher. E não me refiro aqui somente ao conceito de mulher biologicamente estabelecido: há uma ofensiva contra o feminino. 

Mudar esse cenário é possível e é urgente. Para isso, é preciso repensar as bases machistas em que se assenta a cultura brasileira. A tarefa, claro, não é trivial. De parte do Estado, vai ser preciso investir mais em pelo duas frentes: de um lado, em campanhas e ações educativas – capazes de dialogar com meninos e homens – que informem e façam refletir; de outro, precisamos estimular iniciativas populares que permitam que vozes progressistas se ergam no tecido cultural comunitário.

Ser mulher no Brasil é algo perigoso desde sempre. Esse é um país que nasceu naturalizando o estupro de mulheres negras e indígenas, fruto da violência racista que arrancou pessoas negras de África, e que tentou escravizar e exterminar os povos originários.

>>Leia também: Mulheres são principais vítimas de violência, mas país pensa pouco em prevenção

Apesar dessa gênese problemática, tivemos avanços. Muitos deles expressos na Constituição Federal de 1988. Ao tratar de gênero, a Carta incorporou questões discutidas pelos feminismos desde os anos 1960. Nela, incluímos demandas sobre autonomia e autodeterminação. A partir de 1988, a discussão sobre a violência contra a mulher foi politizada. Progredimos, por exemplo, com a criação da Lei Maria da Penha— uma vitória dos movimentos de mulheres. 

De lá para cá, algo mudou. Ergueram-se vozes conservadoras que elegeram, como inimigas, todas as conquistas civilizatórias propiciadas pela Constituição.

O quadro que o Anuário capturou em 2023 começou a ser gestado tempos atrás. Desde 2013, o Brasil assiste a uma espécie de retrocesso conservador. Naquele ano, a parcela progressista da Câmara dos Deputados perdeu a presidência da comissão de direitos humanos, que passou a ser ocupada pelo pastor Marco Feliciano. Foi um ponto de virada: a partir dali, a extrema direita brasileira ganhou espaço até ascender à presidência da República. No processo, vimos diante de nós um país que expunha suas feridas. Uma vez no poder, essa camada conservadora passou a reverberar um discurso que buscava normalizar – e autorizar – a violência de gênero. 

 

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Com certeza, você se lembra de ouvir certo político dizer que a própria filha fora fruto de uma “fraquejada”; e que uma deputada, sua opositora, não deveria ser estuprada por ser “muito feia”. Declarações assim têm efeitos práticos: reforçam a noção machista de que mulheres são inferiores, de que nossos corpos devem ser domesticados. 

A socióloga Jolúzia Batista, articuladora política de Cfemea

Frases como essas ecoam, ainda hoje, na forma de projetos de lei retrógrados como  o PL 1904/2024. Apelidado de PL da gravidez infantil ou PL do estupro, o texto pretende equiparar ao crime de homicídio o aborto realizado a partir da 22ª semana gestacional. Se aprovada, a medida vai dificultar que meninas vítimas de violência sexual tenham acesso ao procedimento. Elas são os principais alvos de estupro no país. Muito jovens, demoram a procurar a ajuda do sistema de saúde para interromper a gravidez. 

Obrigar uma criança a ser mãe é o tipo de absurdo que a sociedade brasileira, felizmente, aprendeu que não deve tolerar. Por isso, estamos, hoje, diante de um ponto de inflexão: há forças conservadoras que tentam fazer a sociedade brasileira retroceder. Mas há também movimentos feministas que lutam para reforçar conquistas para as novas gerações.

>>Leia também: Como funciona a Lei Maria da Penha? 3 perguntas para entender a Lei 11340/2006

Os movimentos de mulheres estão prontos para travar essa disputa narrativa. Há uma onda conservadora em curso, mas há também um rebuliço feminista acontecendo por todo o mundo. Cabe a governos progressistas, como o que ora ocupa a presidência da República, dar fôlego a essa movimentação. 

Nesse debate, a educação precisa ocupar lugar central. Para proteger a vida das mulheres, há coisas importantes a se fazer: precisamos avaliar a aplicação das medidas protetivas; precisamos incentivar as mulheres a denunciar casos de violência. Mas precisamos lembrar, também, que, para elas, a denúncia nem sempre é uma opção. Falar com as mulheres e informá-las sobre seus direitos é importante. Mas precisamos trazer os homens para esse diálogo. A conversa terá de assumir a forma de campanhas nacionais contra o feminicídio. E precisará ter lugar, também, nas escolas. 

É preciso uma educação antirracista, que estimule uma cultura de paz e de respeito ao diferente. Precisamos encarar as escolas como espaços de potência. Hoje, há um governo progressista no plano federal, o que nos oferece a oportunidade de travar essas discussões. A oportunidade existe, mas ainda são muito tímidos os esforços do Estado brasileiro para fazer avançar essa pauta.

Esse mesmo Estado pode agir, ainda, para incentivar que novas vozes se levantem no tecido social comunitário. Hoje,  as comunidades são influenciadas por lideranças de viés conservador. Elas interferem na maneira como as pessoas pensam questões sociais importantes, como a equidade de gênero. Cabe ao governo criar mecanismos para “contaminar” esses espaços com a semente da diversidade. Já tivemos experiências frutuosas no passado — caso dos Pontos de Cultura, criados quando Gilberto Gil esteve à frente do ministério da Cultura. Precisamos retomar essas experiências. Por que o melhor remédio contra o racismo, o machismo e a violência são a cultura e a educação. 

 

Jolúzia Batista atua desde 2013 no CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria) na função de articuladora política. É militante da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Frente Nacional contra a criminalização das mulheres e pela legalização do aborto, e do Levante Feminista contra o feminicídio do DF. Defensora dos Direitos Humanos das Mulheres e Meninas, integrou de 2015 a 2016 o Grupo Assessor da Sociedade civil de ONU MULHERES e a coordenação Colegiada da Plataforma DHESCA Brasil. Pelo CFEMEA, integra também o colegiado de entidades da Frente Legislativa Feminista Antirracista. Mulher Feminista protetora de oito gatos, se reconhece Negríndia pela força da ancestralidade.

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