Para preservar cultura, indígenas puri criam centro de memória online
Considerados extintos já no século XIX, os puri resistiram a tentativas de apagamento de sua cultura. Iniciativa, segundo organizadores, pretende reafirmar existência do povo
Rafael Ciscati
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A professora Carmelita Lopes já tinha quase 50 anos e acabara de se aposentar quando decidiu que queria, nas palavras dela, “fazer o caminho de volta” e registrar, por escrito, a história da própria vida.
Carmelita nasceu numa família humilde, no interior de Minas Gerais. Quando tinha quatro anos, foi entregue aos cuidados de uma madrinha, e levada para viver no Rio de Janeiro. Com a mãe biológica, teve pouco contato. Mas lembrava que a família vinha da cidade de Guidoval, no interior do estado. E que, no vocabulário das pessoas da região, sua trisavó Custódia — uma mulher que, segundo se contava, fora “pega no laço” pelo marido — era chamada de “negra puri”. Carmelita sempre se identificou como uma mulher parda: “É o que dizem meus documentos. Eu me dizia mestiça”. E achava que aquela expressão era simplesmente uma forma de a população do lugar se referir às pessoas negras.
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Somente anos mais tarde, depois de muita pergunta e pesquisa, Carmelita descobriu que se enganara. Os puri eram uma etnia indígena que se espraiava pelo sudeste do Brasil à época da colonização. Perseguidos, foram forçados a deixar de viver em aldeias, até ser considerados extintos pelos governos locais. As estatísticas oficiais enganavam.
Mesmo distantes de suas terras, os puri preservaram histórias e conhecimentos tradicionais, transmitidos entre gerações e misturados à cultura das populações rurais da região. Para Carmelita, a descoberta inesperada deu sentido às lembranças de infância, que a própria família tentara apagar. “Foi, para mim, um despertar. Talvez um pouco tardio. Mas que aconteceu no meu tempo”.
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Tradicionalmente, os puri habitavam uma faixa de terra que se estende do Espírito Santo a São Paulo, passando pelo interior do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Numeroso, eles foram mortos ou escravizados conforme essas áreas ganhavam importância na economia colonial. “Há registros de uso da mão-de-obra de puris escravizados na exploração mineral em Minas Gerais” conta a antropóloga Andreia Prestes — que adota o nome indígena Raial Puri. No século XVIII, eram estimados em 5 mil pessoas. Documentos já do início do século XIX davam os Puri como extintos.
O apagamento dessa cultura, afirma Raial, era útil às elites da época. “E foi usado como pretexto para justificar a ocupação da região”.
Raial e Carmelita — que hoje atende pelo nome Namá Puri — fazem parte de um grupo que, reunindo um misto de memória familiar e trabalho acadêmico, se empenha em manter vivas as tradições desse povo e reafirmar sua existência. O capítulo mais recente dessa história foi a criação, no começo de agosto, do Centro de Memória do Povo Puri.
O acervo, inteiramente online, reúne artigos acadêmicos, gravuras, músicas e um blog, de atualização constante. A curadoria fica a cargo de um conselho formado por sete pessoas, e do qual Namá e Raial fazem parte.
Para familias de origem Puri, como as delas, o processo de retomada da memória muitas vezes envolve cutucar antigas feridas. “Ainda são muito vivas as histórias de violência, e o temor de que declarar-se indígena faça da pessoa alvo de preconceito”, diz Raial. Nascida em Curitiba, mas filha de pais capixabas, Raial conta que descobriu-se indígena depois de se formar em antropologia. “Eu sabia dessa origem, mas as histórias eram vagas”, afirma.
Foi graças ao incentivo de um amigo indígena que ela decidiu buscar mais informações. As conversas com o pai sobre o passado familiar eram truncadas. E as histórias guardavam semelhanças com as de Namá. Nascida no interior do Espírito Santo, a bisavó de Raial fora “pega no laço” pelo marido. “A expressão revela um passado de estupros”, afirma Raial. E remete a uma memória difícil de confrontar.
Nos últimos 20 anos, houve uma revalorização da cultura puri. A mudança ficou demarcada no censo demográfico de 2010. Naquele ano, pela primeira vez, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) permitiu que as pessoas identificassem a que etnia indígena pertenciam. Mesmo sem ser reconhecidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai), os Puri somavam, à época, 675 indivíduos.
Nas últimas décadas, ao menos dois fatores foram importantes para essa retomada. O primeiro, ainda no final dos anos 1990, foi a aproximação entre pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e as comunidades rurais do município de Araponga, no interior mineiro. A cidade tem pouco mais de oito mil habitantes, e forte identificação indígena.
Ao longo dos séculos, seus moradores mantiveram viva a tradição das danças de caboclo. As coreografias são feitas com os dançarinos paramentados como indígenas. E contam histórias que remetem ao passado colonial. Numa delas, narra-se o processo de formação de um guerreiro puri.
Anualmente, desde 2010, a cidade é sede da Troca de Saberes — um evento realizado com o apoio de acadêmicos da UFV e que reúne indígenas de diversas etnias para trocar experiências e discutir agroecologia. Pelos cálculos de Namá, cerca de 30 puris de todo o Brasil participam presencialmente, em média, do evento. “Isso além da população de Araponga, que se identifica em peso como puri ou descendente”, diz ela.
Outro acontecimento importante foram os protestos organizados no Rio de Janeiro, em 2013, contra a demolição do Museu do Índio. Localizado nas cercanias do estádio do Maracanã, o museu seria demolido para dar lugar a um estacionamento. A obra mirava a Olimpíada de 2016. O espaço — um prédio abandonado — era ocupado desde 2006 por indígenas de diferentes etnias, que haviam feito dali a Aldeia Maracanã. Além das manifestações nas ruas contra a demolição do prédio, a notícia provocou mobilizações online.
Em apoio ao museu, indígenas e seus descendentes passaram a identificar sua etnia nas redes sociais. A partir daí, formou-se um grupo de Puris no Facebook. “Apesar da Troca de Saberes, boa parte das nossas atividades são organizadas online”, explica Maná. “Afinal, não temos território. Somos um povo das nuvens”, brinca ela.
A ideia de criar o Centro de Memória surgiu durante a Troca de Saberes de 2019, e tomou corpo nas discussões online. A ideia do grupo é tornar o espaço dinâmico. “Porque somos um povo vivo. E a memória não é estática”, diz Thalita Angelici Puri. Graduada em museologia, ela é uma das pessoas que encabeça a iniciativa.
“As instituições da memória oficial dizem que a gente não existe. Queremos criar uma memória contra-hegemônica, e mostrar que estamos aqui”.
Além de registros históricos, o site reúne também manifestações contemporâneas, como obras de artesãos puris, e registros de cantos e festejos. Já Carmelita, ou Namá, ainda pretende escrever suas memórias redescobertas.
A intenção é preservar sua história e de sua família, que ela quer transmitir às filhas. “Quando comecei esse retorno, me disseram que eu tinha chegado tarde, porque todos já haviam morrido”, conta. “Não cheguei tarde. Foi só agora que eu acordei”.
Foto de topo: pintura do alemão Maximilian zu Wied-Neuwied, do início do século XIX, mostra indígenas Puri em atividades cotidianas (reprodução / Centro de memória Puri)
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