PL que criminaliza aborto pode punir mulher com pena maior que para estuprador
Proposta equipara aborto realizado depois da 22ª semana de gestação ao crime de homicídio. Para Clara Wardi, do Cfemea, meninas que sofreram estupros serão principais prejudicadas
Rafael Ciscati
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A Câmara dos Deputados pode decidir, nessa terça-feira (11), se vai votar com urgência um Projeto de Lei (PL) que equipara o aborto ao crime de homicídio simples. De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) o PL 1904/2024 criminaliza a interrupção da gravidez após as 22 semanas de gestação. Propõe punir, com até 20 anos de prisão, a gestante que realizar o procedimento — a pena por homicídio simples varia entre seis e 20 anos de reclusão.
Caso os deputados decidam acelerar a votação do projeto – no jargão da Câmara, ele “tramitará em regime de urgência” — o texto seguirá direto para o plenário da Casa, sem passar por rodadas de discussão em comissões temáticas. Essa possibilidade preocupa grupos de defesa dos direitos humanos, que temem que a medida coloque em risco a vida de mulheres e meninas. Hoje, especialistas apontam que o acesso ao aborto sofre com restrições no país, mesmo naqueles casos em que o procedimento tem respaldo legal.
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Desde 1940, o aborto pode ser realizado de maneira legal no Brasil em três situações: quando a gravidez põe em risco a vida da pessoas gestante; quando a gestação é resultado de um estupro; e, desde 2012, quando o feto sofre de uma má formação cerebral chamada “anencefalia”, que impede sua sobrevivência fora do útero. A legislação brasileira não estabelece uma idade gestacional limite para a interrupção da gravidez.
Na avaliação de Clara Wardi, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), se a proposta de Cavalcante for aprovada, as principais prejudicadas serão as meninas vítimas de violência sexual. Hoje, mais de 75% dos casos de estupro notificados no Brasil são de pessoas com menos de 14 anos. “É muito comum que meninas que foram estupradas só percebam que estão grávidas mais tardiamente. Ou demorem a contar o que aconteceu a um cuidador”, afirma. “Esse PL estabelece uma pena altíssima [ para a mulher que realizar um aborto]: maior, até, do que o próprio estuprador cumpriria.” No Brasil, a pena por estupro de vulnerável varia entre 8 e 15 anos de reclusão, mas pode chegar a 30 anos de prisão no caso de morte da pessoa violentada.
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Organizações do terceiro setor, entre elas o Cfmea, criaram uma campanha online para pressionar congressista a votar contra a medida. Elas destacam que, por ano, mais de 20 mil meninas com menos de 14 anos têm filhos no país.
O PL 1904/2024 vem na esteira de uma resolução publicada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que proibia os médicos de realizar aborto se utilizando de uma técnica chamada “assistolia fetal” no caso de gestações acima de 22 semanas. O caso foi levado pelo PSOL ao Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu a resolução.
Clara, do Cfemea, explica que o afã dos deputados em votar a proposta com urgência obedece a duas lógicas. De um lado, o PL se insere num contexto mais amplo, de disputa entre os poderes legislativo (representado pelos deputados) e judiciário (no caso, o STF). Deputados vem acusando os ministros de Corte de tentar legislar, ao julgar temas que, na avaliação deles, deveriam ser de competência do legislativo.
De outro lado, Clara diz que há pressa em analisar a proposta antes do segundo semestre, quando as atenções da Câmara estarão voltadas para as eleições municipais. “Estamos num momento em que o presidente da Casa, Arthur Lira, quer cumprir as promessas que assumiu com suas alianças”, diz Clara. “Lira já fez diversas entregas [ à ala conservadora do Congresso]. Colocou em pauta, no ano passado, o Marco Temporal em terras indígenas, por exemplo — um compromisso assumido com a bancada ruralista. A questão do aborto entra nesse bojo de promessas a cumprir”.
Brasil de Direitos: Os deputados querem votar essa proposta em regime de urgência. Por que tanta pressa?
Clara Wardi: De tempos em tempos, surge no Congresso uma ameaça ao aborto legal. Dessa vez, as articulações anti-aborto criaram uma narrativa a partir de uma resolução publicada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Existe pressa porque há um fator de articulação em jogo: estamos chegando perto do fim do primeiro semestre parlamentar, que acaba em meados de julho. No segundo semestre, a Câmara vai estar mais direcionada para as eleições municipais. Estamos num momento em que o presidente da Casa, Arthur Lira, quer cumprir as promessas que assumiu com suas alianças. Uma dessas promessas, pela qual tem sido bastante cobrado, é avançar na pauta antiaborto. Lira já fez diversas entregas [ à ala conservadora do Congresso]. Colocou em pauta, no ano passado, o Marco Temporal em terras indígenas, por exemplo — um compromisso assumido com a bancada ruralista. A questão do aborto entra nesse bojo de promessas a cumprir.
Caso o projeto vire lei, que prejuízos trará?
A principal restrição é ao aborto em caso de estupro, que é equiparado ao crime de homicídio. O PL proíbe interrupção de gestações acima das 22 semanas. Na lei brasileira, hoje, não temos limite gestacional para o aborto legal. O que a gente tem, no país, é uma realidade muito corriqueira de meninas jovens que demoram a relatar que foram estupradas e estão grávidas. Temos um número alto de estupros de meninas, e essa violência costuma acontecer em casa. A criança nem sempre consegue relatar, para um cuidador ou cuidadora, o que aconteceu. Muitas vezes, demora a notar os sinais da gravidez e a procurar uma unidade de saúde onde interromper a gestação. As meninas com até 14 anos são maioria entre as pessoas que procuram os serviços de saúde com gestações acima das 22 semanas. Além disso, o PL segue uma linha argumentativa perigosa, ao colocar as mulheres numa posição muito cruel, considerá-las assassinas. E estabelece uma pena altíssima: maior, até, do que o próprio estuprador cumpriria.
Especialistas em direitos reprodutivos apontam que, na prática, já há barreiras a realização do aborto legal no Brasil – em especial no caso de gestações mais avançadas. Há casos, por exemplo, de médicos que se recusam a realizar o procedimento. Esse é um direito já bastante restrito?
O direito ao aborto, mesmo nos casos protegidos por lei, é bastante restrito. Há uma série de barreiras institucionais. Existe um direito médico chamado “objeção de consciência”. Segundo ele, o profissional pode se negar a fazer o aborto por questões pessoai ou religiosas, por exemplo. Mas, por lei, ele é obrigado a garantir que outro médico realize o procedimento. Na prática, isso não acontece: o médico que se recusa a fazer o aborto não garante que outro profissional realize o procediento. Isso obriga a mulher ou a menina a peregrinar para conseguir o acesso ao aborto legal. Também há casos de desinformação: nas unidades de saúde, acredita-se na existência de um suposto limite gestacional. Isso não existe. Ou pode acontecer de o médico exigir a apresentação de documentos, como um boletim de ocorrência (BO), que não são necessários. Há, ainda, barreiras geográficas: nem todos os estados contam com unidades de saúde que realizam o procedimento. A mulher ou menina se vê obrigada a buscar atendimento em outro estado. No âmbito jurídico, a gente observou, no ano passado, muitos casos de mulheres e meninas entrando com pedidos judiciais para realizar o procedimento, sendo que isso não deveria ser necessário em muitos casos. Por fim, há a barreira do estigma. Há casos em que a pessoa deseja realizar a interrupção legal da gravidez, mas é desestimulada pelos familiares, ou não tem acesso à informação adequada.
Durante o governo Bolsonaro, direitos sexuais e reprodutivos foram muito atacados – houve o caso, por exemplo, a publicação de uma cartilha pelo ministério da Saúde que dizia não existir aborto legal no Brasil. Com a mudança de gestão, houve avanços nesse cenário?
O governo Bolsonaro realmente atacava os direitos sexuais e reprodutivos, e colocou isso como uma das suas agendas prioritários. Hoje, acompanhamos as reverberações disso no Congresso, já que a grande maioria dos parlamentares é conservadora. Depois que o governo Lula assumiu, houve algumas mudanças em relação ao cenário anterior. Elas mitigaram os impactos de alguns retrocessos. O Brasil saiu do Consennso de Genebra, um grupo de países de extrema direita que tenta fazer com que o direito ao aborto legal retroaja. E o ministério da Saúde revogou algumas portarias e resolulções que tinjham como objetivo restringir o acesso ao aborto. Tivemos uma vitório no executivo, que reconhece o aborto legal. Mas foi eleito o Congresso mais conservador desde a redemocratização. E parte desses parlamentares assumiu como prioritárias discussões que, para eles, são pautas morais: mas que, na verdade, envolvem os direitos das mulheres e das populações LGBTQIA+.
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