PL que muda regras para licenciamento ambiental põe quilombolas em risco
Apelidado de PL da devastação, texto exclui mais de 90% das comunidades quilombolas dos processos de licenciamento. Ambientalistas temem que proposta vá à votação no Senado ainda em 2024
Rafael Ciscati
6 min
Navegue por tópicos
Um projeto de lei, em discussão no Senado, pode colocar em risco mais de 90% das comunidades quilombolas existentes em todo o país. A conclusão consta em uma nota técnica recém publicada pelas organizações Terra de Direitos e pela Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
O documento avalia os impactos em potencial da aprovação do PL 2159/2021, que cria novas regras para o licenciamento ambiental. Hoje, todo empreendimento com potencial de provocar danos socioambientais precisa passar por um processo administrativo ao longo do qual o poder público avalia quais os possíveis impactos provocados pela obra, e que medidas podem ser implementadas para reduzi-los.
O novo texto propõe simplificar essas regras. As mudanças, aponta a nota técnica, incluem derrubar a exigência de que as populações quilombolas afetadas pelos empreendimentos licenciados sejam ouvidas.
Seriam afetadas as comunidades quilombolas que ainda não receberam o título de posse sobre as terras que ocupam. Elas são a maioria: 99,72% das 8400 comunidades que existem no Brasil, segundo a Terra de Direitos.
>>Leia também: aquecimento global: perguntas e respostas para entender a crise climática
O texto foi aprovado na Câmara dos Deputados em maio de 2021 . Desde então, é discutido no Senado sob relatoria da senadora Tereza Cristina (PP/RS), ex-ministra da Agricultura durante o governo de Jair Bolsonaro. Conta com o apoio maciço de parlamentares ligados ao agronegócio. Entre as organizações do terceiro setor que acompanham sua tramitação, há o temor de que o texto seja aprovado ainda neste ano de 2024.
“Ele sempre esteve na pauta de prioridades de grupos de representantes dos interesses do agronegócio. Após a aprovação do projeto pela Câmara em 2021, a pressão desses grupos pela aprovação da proposta aumentou, entrando, inclusive, na agenda de projetos prioritários Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA)”, lembra Gisele Barbieri, coordenadora de incidência política de Terra de Direitos. “Embora existam muitos questionamentos sobre o texto do projeto enviado pela Câmara, (por promover um verdadeiro desmonte e flexibilização do processo de licenciamento ambiental) o relatório da senadora deve contemplar as aspirações da bancada ruralista que entende que o novo texto “busca uma regulamentação mais ágil e eficiente para liberar atividades econômicas, especialmente agrícolas e pecuárias’”, afirma.
>>Leia também: com acordo em Alcântara, Brasil se antecipa a condenação internacional, diz ativista
Texto restringe direito à Consulta Prévia, Livre e Informada
A análise feita pelas organizações do terceiro setor aponta que, se o PL for aprovado como está, “causará verdadeira insegurança jurídica e retrocessos nos direitos fundamentais garantidos aos povos e comunidades tradicionais do Brasil”.
Desde 2002, o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Trata-se de um acordo internacional segundo o qual povos indígenas e comunidades tradicionais (como as quilombolas) devem ser ouvidos durante o processo de licenciamento de empreendimentos que provoquem impactos sobre os territórios que ocupam.
Essa consulta deve ser feita seguindo regras criadas com a participação de cada povo ou comunidade. No caso de povos indígenas, por exemplo, o protocolo de consulta pode cobrar que o processo seja conduzido na língua materna do povo que vai ser consultado. Esse processo de escuta é chamado de Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI)
Apesar de constar em uma convenção da qual o Brasil é signatário, o direito à CPLI sofre com limitações.
Hoje, segundo as normas vigentes, o contato entre o quilombolas e o órgão ambiental que faz o licenciamento ambiental é mediado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). No final de 2021, o Instituto publicou uma normativa estabelecendo que só envolverá nos processos de licenciamento as comunidades quilombolas que possuam um documento chamado Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Ele traz informações que indicam quais os limites do território quilombola. A emissão do RTID é uma das últimas etapas do processo de titulação, que costuma ser lento e caro. Por isso, são poucas as comunidades que possuem o documento.
Organizações que defendem os direitos dos quilombolas cobram que as regras atuais sejam revistas, de modo a ampliar o número de comunidades obrigatoriamente consultadas durante o licenciamento.
O PL em discussão no Senado vai na direção oposta a essas cobranças, e pode restringir ainda mais o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada.
O texto em discussão diz, na Seção VII, que no processo de licenciamento poderão se manifestar somente “áreas tituladas a remanescentes das comunidades dos quilombos”. Ou seja: serão ouvidas somente aquelas comunidades que já possuem o título de posse coletiva sobre as terras que ocupam.
“Com aprovação do PL da forma que está o impacto é certo nas comunidades quilombolas, pois o atual projeto exclui do processo de licenciamento a consulta, livre, previa e informada mais de 90% das comunidades quilombolas”, disse Vercilene Dias, coordenadora jurídica da Conaq
Desde 1988, a Constituição Federal diz que é obrigação do Estado brasileiro emitir esses títulos de posse às comunidades quilombolas. Mas o poder público é moroso: segundo levantamento da Terra de Direitos realizado em maio deste ano, serão necessários 2.708 anos para titular integralmente os territórios com processos abertos no Incra, caso seja mantido o atual ritmo.
A nota técnica afirma que o texto do PL deixa dúvidas, ainda, quanto ao destino dos territórios quilombolas parcialmente titulados. Dos 57 territórios titulados hoje, 33 têm títulos somente parciais: não foram titulados em toda a sua extensão.
“A utilização do critério de titulação enquanto requisito para o reconhecimento da existência quilombola em zonas de influência direta do empreendimento é beneficiar o Estado brasileiro por sua própria torpeza”, afirma a nota técnica.
PL da devastação
A tramitação do PL preocupa ambientalistas, que já o apelidaram de “PL da devastação”. Críticos avaliam que, ao reduzir as exigências para licenciamento ambiental, o projeto pode ocasionar o aumento do desmatamento.
Trata-se de um problema que o fortalecimento das comunidades tradicionais pode ajudar a combater. De acordo com o MapBiomas, os territórios quilombolas são os que apresentam as menores taxas de desmatamento. Entre 1985 e 2022, a perda de vegetação nativa nessas localidades foi de 4,7% contra 17% de áreas privadas. Em territórios titulados a taxa é ainda menor: 3,2%.
Você vai gostar também:
Cis e trans: qual a diferença dos termos?
3 min
Saiba o que pode e o que não pode em uma abordagem policial
19 min
4 escritoras lésbicas brasileiras que você precisa conhecer
3 min
Entrevista
Ver maisViolência policial : grupo propõe cortar verba da polícia para combater letalidade
7 min
Como é ser refugiado no Brasil? Que bom que você perguntou!
4 min
Glossário
Ver maisConsciência negra: qual a origem da data celebrada em 20 de novembro
6 min
Abdias Nascimento: quem foi o artista e ativista do movimento negro
8 min