Planos para vacinar pessoas privadas de liberdade variam e falta transparência
População encarcerada aparece em diferentes fases de vacinação, dependendo da cidade ou estado. Planejamento deixa presos idosos ou com deficiência de fora dos grupos prioritários
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[RESUMO] Segundo levantamento elaborado pelo autor, a vacinação da população privada de liberdade contra covid-19 está prevista nos planos de vacinação de cidades e estados do país. As exceções são os planos do estado do Ceará e da cidade de Belém (PA). Nos demais planos analisados, varia a etapa em que essa população será vacinada. Os documentos apresentam, no entanto, algumas falhas importantes. Apesar de prever a vacinação de pessoas encarceradas, os planos regionais não tratam da vacinação de pacientes internados em hospitais psiquiátricos ou em comunidades terapêuticas — os dois casos se encaixam na classificação de pessoas privadas de liberdade.
Há, por fim, falhas na aplicação das vacinas: apesar de a população idosa e com deficência constar entre os públicos prioritários para a imunização, não há registro de que os idosos no sistema prisional tenham sido vacinados. O autor destaca que essa distinção representa uma violação do direito à saúde. "Todos esses fatores contribuem para que, nesse momento de adoção das medidas preventivas e de vacinação de pessoas presas, o Estado brasileiro se coloque em débito com suas obrigações internacionais de direitos humanos. Ao não fazer dessas obrigações o centro das medidas de enfrentamento à COVID-19, autoridades ficam sujeitas a responderem por seus atos, o que também ocorre com o Estado brasileiro na esfera internacional, caso não se corrija a tempo a operacionalização das vacinas para a COVID-19".
A pandemia de COVID-19 e sua Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020, trouxe uma variedade de novos desafios relativos à proteção da vida, da saúde e a prevenção de violação de direitos contra as pessoas presas. Desde o primeiro momento da crise internacional, organizações e especialistas de todo o mundo acenderam um alarme para os riscos de a pandemia ganhar contornos ainda mais agravados em razão das condições que caracterizam a execução penal, como o convívio em espaços avessos ao distanciamento entre indivíduos e, em regra, sob más condições de higiene e de indisponibilidade de equipamentos e atenção à saúde. As principais medidas de prevenção à propagação do vírus se viam estruturalmente obstaculizadas, representando riscos para os variados atores que compõem a comunidade prisional (pessoas presas, trabalhadores, prestadores de serviço, visitantes, advogados, autoridades do sistema de justiça, autoridades religiosas etc.) e para a sociedade de maneira geral, haja vista a potencialização da circulação do vírus a partir desses espaços [1].
A Constituição Federal tem no princípio de não discriminação um de seus pilares, sendo vedada qualquer forma de discriminação no seu art. 3º, IV, além de um mandado de criminalização que estabelece, no art. 5º, XLI, que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. A Lei nº 13.976/20, que trata das medidas de enfrentamento à pandemia de Covid-19, reitera, em seu art. 3°, §2º, III, “o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas” nas medidas adotadas, dentre elas a vacinação e outras medidas profiláticas. Esses ditames são flagrantemente violados quando da exclusão de pessoas idosas e portadoras de comorbidades e deficiências em situação de prisão das etapas correspondentes de vacinação no PNI, sujeitando as autoridades responsáveis a responder por ato de improbidade administrativa em âmbito doméstico e o Estado brasileiro, na esfera internacional, pelo descumprimento de suas obrigações em matéria de direitos humanos.
É preciso registrar que mesmo a Resolução n.º 14/2021 do CNPCP, embora louvável por trazer, enquanto órgão da execução penal, o tema da vacinação para a discussão pública, não ataca o problema aqui levantado. A resolução possui uma redação dúbia ao recomendar a “observação irrestrita das fases e calendários previstos no PNI”. Seria preciso esclarecer se a observação exigida é para que presos em grupos de risco adicional sejam vacinados conforme suas características e vulnerabilidades específicas, ou junto aos demais presos, conforme preveem e está se dando a operacionalização da vacina em âmbito regional e local. É de se observar, ainda, que como o PNI não oferece, como quer apontar a resolução, fases e calendários unificados para todo o país, mas apenas delineia os grupos prioritários como diretrizes gerais.
Quando da adoção do PNI e dos planos de operacionalização regionais e locais, a priorização da vacina de pessoas presas na quarta fase de vacinação parece, de modo geral e se assim efetivada, atender aos parâmetros mínimos de direitos humanos (com a ressalva para a grave ausência desse grupo em planos como o do Ceará e Belém, dentre os planos analisados), embora todos tenham carecido de transparência e debate no momento do estabelecimento dos critérios e demais escolhas a respeito. Já em relação às pessoas presas duplamente pertencentes a grupos de risco, como pessoas idosas, com deficiências ou comorbidades, os planos de operacionalização violam a proibição de discriminação no acesso a bens de saúde, elemento fundamental para a garantia do direito à saúde e cumprimento das obrigações internacionais por parte do Estado brasileiro. Na prática, nenhuma medida de caráter estrutural tem sido tomada para que os mesmos sejam vacinados na etapa que corresponde a seu risco individual de exposição ao vírus, invariavelmente anterior à etapa de vacinação da população presa, em geral. Tal exclusão tem se dado notadamente em razão de sua condição jurídica, acentuando suas vulnerabilidades e riscos de evolução fatal por causa da COVID-19, bem como transgredindo os próprios pressupostos e objetivos coletivos da vacinação estabelecidos pelo Ministério da Saúde.
Esse é um cenário que reforça os desmandos do Estado brasileiro em relação à realidade prisional, que mesmo sob reconhecido Estado de Coisas Inconstitucional no âmbito doméstico e constantes alertas feitos por organismos internacionais de direitos humanos, não dedica a atenção e diligência devida às pessoas presas. Em tempos de encarceramento em massa, essa parece ser a lente predominante com a qual as políticas públicas voltadas e inseridas no contexto prisional administram, e tão só, as pessoas nele custodiadas. Ou seja, uma massa carcerária cujo tratamento ou atenção pouco varia conforme o tipo de prisão de que é alvo (se provisória ou em fase de execução), do regime prisional que cumpre (se fechado, semiaberto ou aberto) e vulnerabilidades específicas coletivas ou individuais. Em última instância, uma atuação alheia à complexidade dos desafios que se impõe a própria política criminal, onde o Estado não enxerga – e não faz valer – a pessoa presa como sujeito de direitos e na qual as penitenciárias continuam sendo meros instrumentos para “sustentar uma ordem em que a exclusão política e social de amplos setores da população se converteu em um de seus baluartes” [21].
Todos esses fatores contribuem para que, nesse momento de adoção das medidas preventivas e de vacinação de pessoas presas, o Estado brasileiro se coloque em débito com suas obrigações internacionais de direitos humanos. Ao não fazer dessas obrigações o centro das medidas de enfrentamento à COVID-19, autoridades ficam sujeitas a responderem por seus atos, o que também ocorre com o Estado brasileiro na esfera internacional, caso não se corrija a tempo a operacionalização das vacinas para a COVID-19. Nesse sentido, é urgente que as considerações feitas pela Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ e as recomendações feitas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, por exemplo, sejam replicadas em outras localidades, de modo que as fases de vacinação de cada grupo de risco incluam as pessoas presas, que seja feita busca ativa nas unidades prisionais a fim de identificar todas as pessoas pertencentes a esses grupos e, por fim, que as estruturas de Estado se mobilizem imediatamente para planejar, garantir e divulgar como se dará a imunização dos mesmos, sem discriminação.
[2] BRASIL. Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a COVID-19, 3ª Ed. (Brasília – DF: Ministério da Saúde, 29/01/2021), p. 13.
[3] Ibid. p. 15.
[4] Ibid. p. 19.
[5] CEARÁ. Plano de Operacionalização para Vacinação Contra COVID-19, v.6 (Ceará: Secretaria de Estado de Saúde, Fevereiro de 2021).
[6] FORTALEZA. Plano Municipal de Operacionalização da Vacinação Contra COVID-19, v.5 (Fortaleza: Secretaria Municipal de Saúde, 31/01/2021).
[7] PARÁ. Plano Paraense de Vacinação – PPV/COVID-19, 1ª Ed. (Pará: Secretaria de Estado de Saúde Pública, janeiro de 2021).
[8] BELÉM. Plano Municipal de Operacionalização da Vacinação Contra a COVID-19 (Belém: Secretaria Municipal de Saúde. Janeiro de 2021).
[9] AMAZONAS. Plano Operacional da Campanha de Vacinação Contra a COVID-19 (Amazonas: Secretaria de Estado de Saúde, 17/01/2021); MANAUS. Plano Municipal de Operacionalização da Vacinação Contra a COVID-19, v.1.1 (Manaus: Secretaria Municipal de Saúde, dezembro de 2020); MINAS GERAIS. Vacinas COVID-19 (Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Saúde). Disponível em
[10] RECIFE. Plano Recife Vacina: Estratégia de Vacinação para COVID-19, 1ª Ed. (Recife: Prefeitura da Cidade do Recife, janeiro de 2021).
[11] RIO DE JANEIRO. Plano Vacinação COVID-19 (Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde, janeiro de 2021).
[12] O PNI estima um total de 753.966 indivíduos para esse grupo prioritário.
[13] Conforme o artigo, para os fins da Lei n.º 12.847/2013 consideram-se pessoas privadas de liberdade “aquelas obrigadas, por mandado ou ordem de autoridade judicial, ou administrativa ou policial, a permanecerem em determinados locais públicos ou privados, dos quais não possam sair de modo independente de sua vontade, abrangendo locais de internação de longa permanência, centros de detenção, estabelecimentos penais, hospitais psiquiátricos, casas de custódia, instituições socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei e centros de detenção disciplinar em âmbito militar, bem como nas instalações mantidas pelos órgãos elencados no art. 61 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de”.
[14] O art. 4.2 do Protocolo Facultativo à Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Decreto n.º 6.085, de 19 de abril de 2007) estabelece: “Para os fins do presente Protocolo, privação da liberdade significa qualquer forma de detenção ou aprisionamento ou colocação de uma pessoa em estabelecimento público ou privado de vigilância, de onde, por força de ordem judicial, administrativa ou de outra autoridade, ela não tem permissão para ausentar-se por sua própria vontade”.
[15] OMS. WHO SAGE values framework for the allocation and prioritization of COVID-19 vaccination (Organização Mundial de Saúde, 14 de setembro de 2020). Disponível em
[16] ONU. Statement on universal and equitable access to vaccines for COVID-19: Statement by the Committee on Economic, Social and Cultural Rights (E/C.12/2020/2, 27 de novembro de 2020), §4. Disponível em
[17] Ibid. §5.
[18] CIDH. A CIDH e sua REDESCA chamam os Estados Americanos a colocar a saúde pública e os direitos humanos no centro das suas decisões e políticas sobre vacinas contra o COVID-19 (Washington, D.C.: Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 5 de fevereiro de 2021). Disponível em Ver também: Derechos Humanos de las Personas con COVID-19: Resolución 4/2020 (27 de julho de 2020). Disponível em
[19] CIDH. Pandemia y Derechos Humanos en las Americas: Resolución 1/2020 (Washington, D.C.: Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 10 de abril de 2020), §8. Disponível em ;
[20] Convenção assinada em 15/06/2015, mas ainda não ratificada pelo Estado Brasileiro.
[21] AGUIRRE, Carlos. Cárcere e sociedade na América Latina, 1800-1940. In: MAIA, Clarissa N.; et. Al (Org.). História das prisões no Brasil, v.1, 1ª Ed. (Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017), p. 44.
Fabio de Almeida Cascardo
Mestre em Direito pela UFRJ, consultor em direitos humanos, membro do Comitê Estadual para Prevenção e Combate à Tortura e conselheiro penitenciário em representação da OAB/RJ, onde integra a Comissão de Direitos Humanos.
E-mail: fcascardo@gmail.com
Para ler o levantamento na íntegra, clique aqui.
Foto de topo: Humberto Tozze/ IDDD
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