Políticos fizeram 94 declarações racistas em três anos, mostra levantamento
Para autores do estudo, recorrência de discurso tenta naturalizar racismo. Presidente Jair Bolsonaro e Sérgio Camargo, da Fundação Palmares, são campeões em número de declarações
Rafael Ciscati
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Era uma quinta-feira, em julho do ano passado, quando o presidente Jair Bolsonaro decidiu parar diante do Palácio do Planalto para cumprimentar apoiadores. “Como está a criação de baratas aí?”, disse, apontando para o cabelo afro de um dos jovens aglomerados. “Você não pode tomar invermectina que vai matar seus piolhos”, completou o presidente, associando a ampla cabeleira a hábitos ruins de higiene. A declaração foi uma das 17 manifestações racistas colecionadas pelo mandatário ao longo dos últimos três anos de governo. A elas, somaram-se comentários contra povos indígenas ( “Cada vez mais, o índio é um ser-humano igual a nós”) ou que negavam a existência do racismo (“racismo é algo raro no Brasil” disse, em entrevista a um programa de TV).
As declarações racistas de Bolsonaro não foram exceção. Um levantamento organizado pelas organizações Terra de Direitos e pela Coordenação das Organizações Negras Rurais Quilombolas (Conaq) mostra que, entre janeiro de 2019 (quando o presidente assumiu) e dezembro de 2021, autoridades públicas brasileiras proferiram, ao menos, 94 discursos de caráter racista em eventos públicos, discursos ou entrevistas. Apesar de, na maioria das vezes, passar impunes, as declarações são danosas à democracia: na avaliação dos autores do levantamento, elas buscam naturalizar o racismo, de modo a minar direitos já conquistados.
Batizado de “Quilombolas contra Racistas”, o trabalho mostra que, desde o início do governo Bolsonaro, houve ao menos uma manifestação pública de racismo por mês. Elas foram proferidas por políticos eleitos, ministros de Estado ou membros do judiciário. Nessa contagem, os autores do trabalho não incluíram episódios que poderiam ser classificados como de “injúria racial”: quando uma pessoa usa a cor da pele, etnia ou religião como forma de ofender alguém.
Na avaliação da Conaq, as eleições de outubro de 2018 foram um marco para a propagação de discursos racistas — desde então, afirma o trabalho, eles cresceram em frequência e visibilidade. As manifestações foram divididas em cinco grupos. Há aquelas que reforçam estereótipos racistas: caso do que foi dito pelo deputado federal Daniel Siveira (preso no ano passado depois de divulgar um vídeo com ameaças a ministros do Supremo Tribunal Federal) que disse haver “mais negros com armas, mais negros no crime e mais negros confrontando a polícia”. Esse é o grupo de declarações mais numeroso: reúne 39 manifestações.
Em segundo lugar, há as manifestações que negam a existência do racismo. No terceiro grupo, foram reunidas aquelas que estimulam restrições de direitos. Para a Conaq, foi isso o que o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, fez ao se referir ao movimento negro como “escória maldita” durante um reunião com assessores. No quarto grupo, foram reunidas manifestações de promoção da supremacia branca. No quinto, estão declarações que justificam ou negam a escravidão.
A recorrência desse discurso parece aumentar conforme cresce a proximidade da autor com o governo federal. No ranking de autoridades que propagam discursos racistas, dois nomes têm destaque: o do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, e o do presidente da República, Jair Bolsonaro. Conhecido por negar a existência do racismo, Camargos está a frente da principal instituição pública responsável por promover os direitos da população afro-descendente. Dos 94 discursos racistas registrados, 19 (20%), são dele. O presidente Bolsonaro, por sua vez, foi autor de 17 ocorrências — 18% do total.
Na interpretação da Conaq, a frequência dos ataques é intencional: “Com isso, é perceptível a existência de uma estratégia governamental de desmonte das pautas voltadas à população negra a partir do discurso racista”, escreve a equipe de pesquisa no relatório. “Isso porque, é notável o engajamento das duas autoridades públicas na tentativa de modificação do entendimento social sobre a existência do racismo no Brasil”.
O estudo chama a atenção para o fato de que, raramente, essas autoridades sofrem algum tipo de consequência. Em 2021, por exemplo, 2/3 das ocorrências de discursos racistas não foram apuradas, nem tampouco houve pedidos de responsabilização. “As autoridades públicas praticam discursos racistas, ao serem questionados negam a existência do racismo e não são responsabilizadas pelas suas práticas criminosas, contribuindo com a consolidação e perpetuação de práticas racistas para além da esfera governamental”, afirma o relatório.
Foto de topo: O presidente da Funação Palmares, Sérgio Camargo (Divulgação: Twitter)
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