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População negra não aparece nas políticas de saúde, diz ativista

Ativista na área da saúde pública, Rosilene Torquato defende que políticas levem em conta as especificidades de saúde da população negra

Fabio Leon

11 min

Igor Santos/Secom

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Nossa entrevistada tem 56 anos, um filho e dois netos. Uma mulher negra que inicia a militância dentro da Igreja Católica. Seus pais também são católicos e fundadores da Igreja Nossa Senhora de Fátima, no bairro Banco de Areia (Mesquita). A mãe de Rosilene é uma militante do movimento de direitos enquanto o pai, mais articulado com o movimento religioso. Os dois se conhecem dentro da igreja, têm 5 filhos e são moradores de Mesquita. Ela ingressa na militância negra, em 1987, através do movimento Agentes de Pastoral Negros do Brasil (APNs) que completou 30 anos, em 2014, e que já era uma preparação da Campanha da Fraternidade de 1988, cujo lema era Fraternidade e o Negro, realizada no Centro de Formação de Líderes (CENFOR).


– “Era uma campanha que focava o centenário da falsa Abolição de 1888. Ela nasceu a partir da Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano que se realizou na cidade de Puebla, em 1979 que, dentre outras ações, visava um maior olhar sobre a evangelização da América Latina. Dessa forma, padres, freiras e alguns leigos perceberam que o Brasil tinha uma população excluída, que era a população negra, e  questionou-se a situação socioeconômica dos negros cristãos, além de fortalecer também o movimento negro na igreja”- diz Rosilene. 


De pastoral, passaram a ser um movimento negro e hoje agregam pessoas de outras religiões. Tiveram vários debates e queriam combater a invisibilização dos corpos negros valorizar a História que não fosse contada apenas do ponto de vista europeu, além de combater o embranquecimento histórico do Brasil. 


– “Porém, em muitos lugares, esse debate não foi aprofundado, muitas pessoas não aceitaram ou não quiseram falar sobre isso. Mas continuamos a lutar pela igualdade, pelo acesso e garantia de direitos, disputar e estar nos espaços de poder”, finaliza. 

 

A senhora escreveu no seu TCC intiulado “Vozes e Olhares das Agentes de Pastorais Negras nos anos 80: experiências na Baixada Fluminense que “a visibilidade da questão racial possibilitou que negros passassem a pensar, discutir e estabelecer visões menos conservadoras e mais críticas em relação a chamada democracia racial brasileira”. Como isso se aplica na saúde pública?

Ainda estamos discutindo isso enquanto mulheres, principalmente. Nós temos o recém-criado Comitê Técnico da Saúde da População Negra pelo terceiro governo Lula. É importante ter um espaço para direcionar as políticas para a saúde da população negra. Precisamos ter pesquisas sobre a questão da saúde, do atendimento à população negra, políticas que abordem a necessidade de respeito às pessoas que são atendidas pelo SUS, principalmente por seus profissionais. Por que digo isso? Tem a questão do preconceito, do racismo e essa pessoa acaba ficando mais doente por causa desse atendimento ruim. Então é importante a saúde da população negra ter essa política diferenciada. Por exemplo, a questão da anestesia na hora do parto. Foram feitas denúncias de que mulheres negras não recebiam a mesma quantidade de anestesia que uma mulher branca. Essas denúncias vieram de enfermeiras, técnicas de enfermagem, médicas da rede pública. Existe uma ideologia racista na medicina que diz que as mulheres negras são mais resistentes à dor. Essas ideias racistas continuam na estrutura da Medicina e no Direito. Por isso, precisamos estar mais presentes nesses espaços para desconstruir esse processo. Por isso, as cotas para negros e negras são importantes, pois como vamos entender, compreender, estudar e promover essas investigações? Precisamos de mais financiamentos públicos para essas pessoas se dedicarem de forma mais estrutural ao problema do racismo na saúde. 


Na sua opinião, os institutos de pesquisa, principalmente os que trabalham com saúde pública, demonstraram algum tipo de avanço no que se refere às especificidades da população negra e periférica? 
Tem avanço porque tem movimento popular incidindo. Tem movimento aguerrido, não só da sociedade civil, que não é especificamente entendida da questão da medicina, mas também temos o povo que faz a luta pelo SUS, pois é o melhor sistema de saúde que temos. Nós temos que protegê-lo porque ele fornece não só o atendimento, mas possibilidade de participação popular. Temos ouvidorias, as defensorias públicas que acolhem denúncias. Outro caso são as Clínicas da Família que são divididas por regiões e é um sistema que funciona também. Mas existe uma defasagem de profissionais por causa da falta de concursos públicos. Se houvesse mais concurso público, não haveria o receio dos profissionais da saúde serem substituídos a cada troca de prefeito. Temos várias UPAs, mas não temos muitos hospitais ainda. As internações são mais direcionadas para Caxias e pras unidades do Rio de Janeiro. Existe um hospital municipal em Nilópolis, que é o Juscelino Kubitschek, mas não é de grande porte. No Hospital Estadual Ricardo Cruz (HERCRUZ) o atendimento é maravilhoso, mas ainda não dispõe de emergência. É para onde as UPAs encaminham seus pacientes. Um outro problema que vejo é o SISREG. Muito demorado e ainda privilegia pessoas brancas e com poder. Olha só o que aconteceu com o apresentador Faustão. Quantas pessoas estavam naquela fila do transplante de coração e ele conseguiu fazer uma operação urgente e quanto tanto os outros estavam esperando? Há muita diferença no que acontece no campo institucional e nos movimentos sociais. A Fiocruz é uma instituição séria, mas ela precisa ser provocada, de vez em quando, nas questões raciais voltadas à saúde da população negra.  A minha instituição, os Agentes de Pastorais Negras, junto com a Fiocruz, fez uma investigação sobre a questão da fome na população negra, na época da pandemia, e como ela foi atingida. Nós estamos na época de terminarmos essa pesquisa e divulgarmos. Também saiu uma pesquisa sobre como a anemia falciforme, uma das doenças crônicas que atinge majoritariamente a população negra, tem mais impactos na saúde odontológica de negros e negras. E é uma doença que não tem cura, que gera muita dor e a única forma de aliviar essas dores é através de morfina. Mas, da mesma forma que existem grandes investimentos e doações para laboratórios e institutos de pesquisa desenvolverem curas para determinadas doenças, não vemos esse empenho todo com a anemia falciforme. Nem mesmo para se criar um remédio para atenuar os efeitos da doença. Então essas provocações, se não partirem da gente, não geram resultado algum.  


Na sua opinião, como você acha que as mulheres negras da Baixada têm se organizado para enfrentar essas dificuldades, principalmente no que diz ao acesso à saúde e à garantia de direitos?  
Ainda há poucas de nós nessas frentes e temos poucas organizações. Eu sou de uma organização de mulheres negras aqui na Baixada, que é o Cabeça de Negra. Vamos ter em breve uma conferência estadual de mulheres marcada para a primeira semana de julho. Aí nós vamos poder olhar quantos movimentos de mulheres nós temos aqui na Baixada. Nós temos várias mulheres atuantes em organizações de mulheres negras, mas poucas de base comunitária. Um grupo bem organizado são as ialorixás que são muito atuantes em seus terreiros. São elas que atendem a suas comunidades quando as políticas públicas não chegam. Elas têm acervos de ervas em seus territórios, carregam conhecimento da memória, saberes ancestrais. Elas têm essa dimensão territorial da saúde pública. 


Como a sua ONG, a Cabeça de Negra, vê essa questão da saúde pública na Baixada Fluminense.
Nós estamos terminando um projeto, junto com a ONG Fase, chamado “Costurando Moda com Direito”. E na pesquisa, nós percebemos que as mulheres que trabalham como costureiras domiciliares para grandes marcas adoecem muito. A maioria são mulheres negras que trabalham horas e horas naquela máquina e não têm direitos garantidos enquanto trabalhadoras porque é tudo contrato de boca. Algumas têm MEI e outras têm Bolsa Família. Antigamente, existiam no Rio e na região metropolitana grandes fábricas. São Cristóvão era um polo e tinha uma fábrica em Vilar dos Teles (São João de Meriti). Todas essas fábricas encerraram suas atividades. Para baratear os custos de produção, resolveram fazer a divisão dos trabalhos. Por exemplo: vai se fazer uma calça comprida, mas você não faz ela toda. Uma pessoa faz o corte, outra coloca o os botões, outra, os bolsos, uma outra o zíperes e por aí vai. Um vestido de grife para elas saem por 17, 20 Reais, enquanto que essa roupa vai ser vendida por 200 a 300 Reais. Então, é um tipo de um processo de escravidão. Se elas errarem qualquer peça, elas têm que pagar por qualquer erro. Às vezes, o molde veio com defeito, eles vão dizer que o erro foi da costura no fechamento. As horas infinitas de trabalho também lesionam e geram artrose nas mãos, pés, atacam a coluna. E como elas costuram nas próprias casas, muitas dormem por cima das máquinas por causa do cansaço extremo. Faz comida, volta para a máquina, leva os filhos na escola, volta para a máquina. De sete da manhã às onze da noite. Isso quando não trabalham de madrugada. Tentamos falar com o sindicato das costureiras, mas não fomos atendidos. 


De que forma a violência obstétrica, que afeta desproporcionalmente mulheres negras, se manifesta na Baixada Fluminense?
Existe uma quase tortura nesse atendimento quando nos referimos às mulheres negras. Lá no Cedim (Conselho Estadual dos Direitos da Mulher) tem uma comissão especial para investigar esses casos. E são muitos. Tem o caso do anestesista que estuprou uma paciente em trabalho de parto no Hospital da Mulher, em São João de Meriti. E ainda tem um fato complicador, que a equipe que gravou o vídeo que flagrou essa violência ter sido processada, por ter ido contra o regulamento do hospital sobre filmagens em locais de procedimentos cirúrgicos. Novas denúncias surgiram porque ele trabalhava em outros hospitais. Isso tudo aconteceu porque existe uma rede de proteção entre os médicos que não leva em consideração que tem uma lei que permite que mulheres em trabalho de parto estejam acompanhadas. Tem casos de mães que acabaram de dar à luz, mas já são encaminhadas direto pra casa. Quando o normal é a mãe sair do hospital, após o parto normal, ficar internada um ou dois dias, e após uma cesariana, quatro dias depois ser liberada. A coisa piora quando tem o fator escolaridade envolvido. Por exemplo, eu tenho uma prima de segundo grau branca, de cabelo liso, com ensino superior. Ela disse que o atendimento foi maravilhoso. A meia-irmã do meu filho teve o parto no mesmo hospital, mas foi muito maltratada. “Ninguém quis me ouvir. Eu estava com dor. Me levaram até o último grau de dor pra fazer a cesária”, ela disse. Ela tem só o ensino fundamental e é negra. Meu filho hoje tem 32 anos, mas meu parto também foi sofrido. Eu estava na mesa de operação às 7h e saí às 10h. Eu tive meu filho em Belford Roxo e as mulheres não têm o direito de gritar, não podem chorar e não chamar ninguém. Mulheres em contração, sofrendo lavagem e ainda são deixadas sozinhas. Embora haja muitas denúncias em relação a essas práticas, elas ainda existem. Quando nasci, fui retirada à base de fórceps. Era uma época em que a enfermeira subia na barriga da mãe para, literalmente, espremer o bebê para fora do útero. Além disso, várias mulheres foram submetidas de forma desnecessária a episiotomia. Mas muitas mulheres negras e periféricas não têm essa informação e podem ter sido mutiladas em suas genitálias apenas para bater a meta de atendimentos do dia. Por isso é que não querem acompanhantes. Mas os acompanhantes sabem disso também? Eu sinto esse corte até hoje. Os médicos apontam uma série de razões para isso: “porque a cabeça não está passando pela vagina, porque está em sofrimento fetal”. Mas a verdade é que são médicos que não respeitam o tempo da criança. 

 

A entrevista completa você confere no site do Fórum Grita Baixada

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