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Por que o Congresso discute acabar com as saídas temporárias de pessoas presas

Projeto que restringe "saidinha" é aprovado por comissão do Senado. Para especialistas, medida é forma de “populismo penal” e não melhora segurança

Rafael Ciscati

8 min

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Essa matéria foi atualizada no dia 06 de fevereiro de 2024.  Uma versão anterior do texto foi ao ar no dia 23 de agosto de 2022.

A Comissão de Segurança Pública do Senado aprovou, nesta terça-feira (06), um projeto de lei que restringe o acesso de pessoas encarceradas às saídas temporárias do sistema prisional – as chamadas “saidinhas”.  O texto muda a atual Lei de Execuções Penais. Hoje, pessoas presas em regime semi-aberto e que já cumpriram parte da pena – 1/6 no caso de réus primários, 1/4 em caso de reincidentes –  têm direito a sair da penitenciária por alguns dias. As chamadas “saidinhas” costumam ser concedidas até cinco vezes ao ano, geralmente em datas comemorativas e feriados. O objetivo é contribuir para a ressocialização das pessoas presas, ao permitir que mantenham laços sociais e familiares. “São vínculos que elas perdem durante o aprisionamento, e que as saídas permitem reconstruir” diz Lucas Gonçalves, advogado da Pastoral Carcerária Nacional. 

O texto já havia sido aprovado pela Câmara dos Deputados em agosto de 2022. Na ocasião, os deputados votaram pelo fim completo do benefício. O projeto foi flexibilizado pelos senadores, que mantiveram o direito às saídas, desde que para trabalho e estudo. Os parlamentares ainda aprovaram a tramitação da proposta em regime de urgência. Isso significa que, agora, o PL segue direto para votação no plenário do Senado, sem necessidade de passar por outras comissões da Casa. 

A proposta tramita há mais de 10 anos: foi apresentada pela senadora Ana Amélia (PSD-RS), em 2013. Originalmente, pretendia restringir as saidinhas, que ficariam limitadas a uma por ano.

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Não é a primeira vez que as saídas temporárias entram na mira do Congresso. Uma busca no site da Câmara dos Deputados mostra que, desde 2019, foram propostos ao menos 40 PLs tratando do tema. A maioria pretendia eliminar ou restringir o benefício. Em 2019, as regras que regulam as saídas temporárias já haviam mudado: elas foram vedadas a pessoas que cometeram crimes hediondos. A mudança foi aprovada como parte do Pacote Anticrime, como ficou conhecida a lei 13.964/19, patrocinada pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro. 

Na avaliação da advogada Janine Salles de Carvalho, o fim das saídas temporárias é reflexo de um fenômeno conhecido como “populismo penal”. Ele acontece quando políticos defendem medidas polêmicas na esperança de agradar o eleitorado. É o caso, por exemplo, da redução da maioridade penal. Propostas assim tendem a ganhar espaço conforme se aproxima o período eleitoral. “Em ano de eleições, os parlamentares escolhem temas polêmicos para debate, que mexem com a sensação de segurança do eleitor”, afirma Janine, que é secretária executiva da Rede de Justiça Criminal  – uma coalizão de nove organizações do terceiro setor que atuam na área de segurança pública e dos direitos de pessoas encarceradas. A estratégia, explica ela, é ganhar notoriedade entre eleitores, de modo a conquistar votos. Quando o PL foi votado na Câmara, em 2022, 449 dos 513 deputados federais tentavam a reeleição. Na ocasião, o texto passou com folga: 311 votos a favor frente a 98 contrários. 

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O apelo à segurança foi ingrediente importante durante a votação do PL 6579/2013 na Câmara naquele ano. Ao defender a proposta, o relator, deputado capitão Derrite (PL-SP), ressaltou que a mudança legislativa era importante para “combater a sensação de impunidade”. “ Uma grande quantidade dos presos se aproveita das saídas para se evadir do cumprimento da pena”, disse ele. “Causa a impressão de que os presos não cumprem suas penas. E, pior, de que o crime compensa”. 

De acordo com o jornal Folha de S.Paulo, a discussão ganhou novo fôlego em janeiro de 2024 depois da morte do sargento da Polícia Militar Róger Dias da Cunha. O PM foi baleado por um homem que estava em saída temporária em Belo Horizonte (MG).

O fim das saídas temporárias é um jeito eficiente de reduzir a criminalidade? Quais os impactos dessa mudança.

O que são as saídas temporárias?
As saídas temporárias estão previstas no artigo 122 da Lei de Execuções Penais, uma legislação de 1984.  Ele estabelece que têm direito a sair do estabelecimento prisional, por até sete dias, a pessoa que cumpra pena em regime semi-aberto e que tenha apresentado bom comportamento. O regime semi-aberto difere do regime fechado: nele, a pessoa que cumpre pena pode deixar a prisão durante o dia para trabalhar ou estudar, mas deve voltar à noite. 

O objetivo das saídas temporárias é contribuir para a ressocialização da pessoa presa. Elas são costumeiramente concedidas cinco vezes ao ano, em datas comemorativas, como no dia dos pais ou no Natal. Mas isso não é regra: a lei não estabelece as datas em que devem acontecer. “A maioria das pessoas aproveita esses momentos para rever família e amigos. Ou para estudar”, afirma Lucas, da Pastoral Carcerária Nacional. “As pessoas saem para reconstruir laços afetivos e sociais”.

Quem ganha direito à “saidinha” não volta para a prisão?
A ideia de que o preso beneficiado pela saidinha acaba escapando do cumprimento da pena foi o principal argumento em defesa da sua extinção. “A Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo informou que, na passagem de 2021 para 2022, 1628 presos que deixaram as penitenciárias do estado durante a saída de fim de ano não retornaram ao sistema prisional” afirmou o deputado Capitão Derrite, relator do projeto de lei. 

Janine Ribeiro aponta que o número destacado pelo parlamentar está correto, mas informa pela metade. “Esse número absoluto equivale a uma parcela ínfima da população prisional do estado”. No estado de São Paulo, há pouco mais de 203 mil pessoas presas. Os presos que fugiram, portanto, equivalem a menos de 0,8%.

Janine conta que, de maneira geral, fugas são um evento raro no sistema prisional brasileiro. Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias  (Infopen) de 2019 apontam que a taxa de fugas – motivadas pelas saídas temporárias ou por quaisquer outras razões – é de 0,99% em todo o país. 

Na avaliação de grupos da sociedade civil organizada, a mudança na lei não trará benefícios para a segurança pública. “O projeto foi debatido de maneira rasa, e o resultado será agravar a situação das pessoas presas” afirma Lucas, da Pastoral Carcerária. 

O fim das saídas temporárias passa a valer imediatamente?
Para passar a valer, a mudança precisa primeiro ser votada no plenário do Senado, de onde o texto partiu em 2013. Mesmo assim, pode não virar lei. “Mesmo que seja aprovado no Senado, esse projeto ainda pode ser questionado no Supremo Tribunal Federal (STF)”, diz Janine. “Na nossa avaliação, ele tem o que chamamos de “vícios de constitucionalidade”. 

Além de proibir as saídas temporárias, o projeto introduz duas novidades: a obrigatoriedade do monitoramento com tornozeleira eletrônica e a imposição do exame criminológico a todas as pessoas encarceradas que pretenderem progredir de regime. Hoje, o exame criminológico é facultativo. Conduzido por psicólogos, ele busca aferir as habilidades sociais da pessoa que pretende passar do regime fechado para o semi-aberto, por exemplo. Na avaliação de organizações da sociedade civil, faltam recursos financeiros para garantir a realização dos exames com celeridade. A medida deve resultar em longas filas que, na prática, podem impedir que a progressão de regime aconteça. “Por causa disso, é possível que o STF considere o projeto inconstitucional”, explica Janine. 

Além disso, Janine explica que as pessoas presas que já podem ser beneficiadas com as saídas temporárias continuarão a ter esse direito. “A legislação penal não retroage quando pode gerar prejuízo para a pessoa acusada. Mesmo que a lei seja aprovada esse ano, as pessoas que têm o benefício vão continuar gozando”.

Foto de topo: Agência Brasil

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