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Por que precisamos falar sobre o genocídio negro

Giselle Florentino

Giselle Florentino - Idmjr

13 min

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Este texto foi construído a partir da transcrição da explanação de Giselle Florentino, Coordenadora Executiva da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial no Seminário realizado em parceria entre a IDMJRacial e o Ministério Público Federal: “Por que Precisamos Falar de Genocídio Negro?” Realizado no dia 17 de julho de 2024, na sede da Procuradoria Geral da República no Rio de Janeiro. Publicado, originalmente, no site da IDMJR. 

As conversas sobre genocídio não são uma novidade, e é importante construírmos categorias e tipificações para a questão mas, principalmente, saídas e responsabilização desse Estado frente a isso. Vou sair um pouco do debate conceitual filosófico sobre o genocídio, e vou seguir minha liderança, Patrícia Oliveira – representante da Agenda Nacional Pelo Desencarceramento, da Frente Estadual Pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro e da Rede de Mães e Familiares Vítimas de Violência do Estado – e mostrar um pouquinho da materialidade do que é a produção de morte causada pelo Estado para a população negra, que é a favelada, que é a periférica e que corta toda a formação social brasileira.

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Eu queria iniciar essa conversa mostrando um panorama muito simples e curtinho sobre: Onde está o povo preto dentro do Brasil hoje?

Eu não quero apresentar aqui alguns dados sobre saúde ou escolaridade, ou apenas de políticas sociais, mas sim entender onde está esse corpo preto na dinâmica social hoje. Como eu sou economista, sou apegada aos dados, e vou trazer algumas informações para materializar como o genocídio do povo negro não começa  e nem termina na ponta do fuzil. Existe uma estrutura de séculos disposta a exterminar as populações negras e não brancas. Ela determina a faixa salarial, quem vai passar fome, quem tem acesso à água e até mesmo que tem direito a um enterro digno.

  • A cada três pessoas presas, duas são negras.
  • Oito a cada dez pessoas mortas pela polícia são negras.
  • Os negros representam 72,9% dos desempregados no Brasil.
  • Em relação a salários, a população branca recebe 69,5% a mais do que pessoas negras.
  • Menos de 5% dos trabalhadores negros têm cargos de gerência ou diretoria.
  • 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza.>>Leia também: o que é necropolítica

Essa é uma fotografia de onde está o corpo preto e, principalmente, esse é o resultado da produção de genocídios – que são vários – da população negra no Brasil hoje.

Mas eu ainda nem comecei a falar sobre violência, que é o tema que a gente na IDMJRacial mais atua. O que eu estou falando aqui é que há um processo de cerceamento de direitos da população negra, um não acesso a políticas sociais, políticas públicas básicas para a população negra e como isso resulta, na verdade, em não acessos à cidadania – a partir dos marcos ocidentais do que é ser cidadão – em sua forma mais primária e básica possível.

>>Leia também: nada substitui o trabalho de base, diz Opal Tometi, do Black Lives Matter
Nós estamos falando de uma população que hoje, no Rio de Janeiro, quase 200 mil pessoas não possuem um registro civil. São quase 200 mil pessoas sem certidão de nascimento, isso quer dizer que o Estado não identifica essas centenas de milhares de pessoas como cidadãos registrados. A Patrícia Oliveira falava ainda há pouco sobre a dificuldade de se criar e monitorar mecanismos de controle dentro do sistema prisional; mas pensem, se está ruim para aqueles que possuem documentação ao entrar na SEAP (Secretaria de Estado de Admnistração Penitenciária), imagina para aquele que não tem documento. Isso não é um equívoco ou algo aleatório, na verdade é uma construção, uma opção política.

Hoje o Estado brasileiro tem a opção política de promover o genocídio da população negra e encarar o corpo preto como inimigo público. Nós vemos isso na produção de políticas de enfrentamento ao tráfico de drogas, a dita guerra às drogas. A gente assiste a isso, na negação de políticas públicas básicas como o direito à cidade, à habitação, saneamento.

Eu sou da Baixada, sou cria do Município de Nova Iguaçu. A  Baixada Fluminense é uma região que aglutina 13 municípios, apenas 60% dela possui acesso a saneamento básico. Saneamento básico é um problema da idade média, nós estamos em 2024, e ainda estamos falando de esgotamento sanitário. Quando a gente vai olhar de forma geral, na verdade, os territórios precários ou com ausência de esgotamento sanitário hoje são territórios predominantemente pretos e pardos.

Na Baixada Fluminense, a maior parte da população é formada por pessoas negras. Desde o processo de colonização, a Baixada é entendida como um problema de segurança pública. E quando olhamos para nossa realidade atual, a gente ainda é visto como um problema de segurança pública.

O lugar de onde venho, Nova Iguaçu, faz parte de uma região cuja fundação, sua formação histórica e social, se dá a partir de um complexo quilombola chamado Hidras de Iguassú. Ali era um território comandado por mulheres negras que fundaram aquela região. E não só para construir resistência, mas era também responsável pelo escoamento de produção agrícola do Estado da Guanabara.

Já no período da Corte Portuguesa, era entendido como um território perigoso que deveria ser combatido e, principalmente, retirado. Aquelas pessoas deveriam ser retiradas daquele espaço e ser desmanteladas junto com suas organizações políticas, porque eram vistas como inimigas a esse Estado.

Mortes provocadas pelo Estado

A partir disso, entrando nesse debate de violência, eu gostaria de pontuar que de 2011 a 2022, 600 mil pessoas foram assassinadas por esse Estado no Brasil. Esse dado é da categoria de mortes violentas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Esse dado não é da IDMJRacial. Eu resolvi utilizar as estatísticas ditas oficiais para a gente também ter ideia do absurdo em que a gente está mergulhando. 600 mil pessoas em 10 anos é muita coisa.

E aí, eu queria lembrar também que, dessas 600 mil pessoas assassinadas pelo Estado: 

  • 76% eram pessoas pretas.
  • Nos casos de autos de resistência no Brasil hoje 78% das vítimas são pessoas pretas.
  • Na letalidade contra adolescentes, 81% são adolescentes pretos.
  • Nos casos de homicídio, 75% são de pessoas pretas.
  • Nos casos de feminicídio, 61% são de pessoas pretas.

A população carcerária, em média, é formada por  66% de pessoas negras, mas como eu bem aprendi, com a Patrícia Oliveira: em Roraima, as pessoas pretas somam 92% de toda a população carcerária.

Eu estou repetindo essas estatísticas, parece um pouco cansativo, mas talvez seja para que tenhamos ideia do problema em que fomos colocados. E isso não é um problema dos últimos governos, a gente precisa voltar um pouquinho no processo histórico para entender como isso é forjado.

A escravidão da população africana precisa ser compreendida e analisada em diferentes condições históricas e temporais. Por que eu estou falando isso? Na IDMJRacial a gente atua com o debate sobre desaparecimentos forçados. Desaparecimentos forçados é o sequestro, a captura, o assassinato e em seguida a desova desse corpo, né? O sumiço, o desaparecimento desse corpo.

Quando começaram a chegar os casos de desaparecimentos forçados para a gente na Baixada, não compreendemos muito bem aquela dinâmica. A gente foi tentar compreender o que era aquilo e foi no momento de expansão do poder das milícias no território. E já atuando há cinco anos com desaparecimentos forçados, a gente percebeu que ele não é um fenômeno novo.

E a gente da iniciativa tem muito problema com essa questão de novidades, né? De categorias novas, de tudo que é muito recente, porque de fato acreditamos que esses problemas e questões têm a sua raiz e estrutura em processos passados, anteriores. Prezamos  muito por isso, por entender a continuidade dos processos, então quase nunca usamos nada “novo”.

Na verdade, a gente tenta pegar a raiz do problema e puxar uma linha histórica sobre esse problema. Em construção com o Fransergio Goulart, coordenador da IDMJR, com os moradores do território, e assistindo às cenas de terror do Estado, a gente entende que o desaparecimento forçado é um tipo de violência colonial que perpassa o processo de escravização dos corpos pretos.

A retirada forçosa de africanos e africanas, trazidos para esse dito novo mundo, no processo de colonização, é um processo de desaparecimento forçado. E ele não fica apenas no processo de colonização. Ele também atravessa outros tempos históricos.

Por exemplo, na formação social brasileira, com o processo da ditadura empresarial militar houve o desaparecimento de pessoas. Alguns colocam como desaparecimento político. E quando vamos olhar, o porquê de ser desaparecimento político, é porque são de pessoas brancas, da classe média, que atuavam em partidos políticos ou nas esferas institucionais de luta.

Isso apaga a população preta que também estava fazendo resistência ao processo de ditadura empresarial militar. O que a gente falava com os desaparecimentos forçados, é tudo nesse caldeirão. E aí vão aparecer vários acadêmicos e especialistas falando: vocês vão tirar a essência da categoria.

E entendemos que é necessário pensar o desaparecimento forçado cortando diversas condições e tempos históricos, mas principalmente, compreendê-lo como um instrumento de terror de Estado. Porque ele chega hoje, atravessando a escravização, a ditadura, a república e chega na área de milícias.

O que está acontecendo hoje, na Baixada Fluminense, é um processo de desaparecimentos forçados. E a milícia utiliza isso quase como um instrumento pedagógico de promoção do terror.

Na IDMJRacial, nós resolvemos escrever e publicar sobre desaparecimento forçado, lançamos boletins em 2021, 2022 e 2023. Em 2023 identificamos 92 cemitérios clandestinos, que são áreas de desovas de pessoas. Se eu conheço essa informação, vocês podem ter a certeza de que o Estado e a polícia também conhecem. Ocorrem sempre em áreas que são terrenos ermos, em beiras de estradas, linhas de trem, pontos de rio, onde as pessoas estão sendo jogadas, seus corpos estão sendo jogados ali, sem nenhum tipo de identificação. Tem áreas que têm mais de 30 corpos. E a gente não consegue identificar quem são essas pessoas. E não existe, não há intencionalidade de política pública para identificar, pelo menos, quem são essas pessoas.
Já identificando esses pontos focais, conseguimos fazer ligações entre operações policiais, disputas de territórios por frações de milícias e tráfico de drogas, com uma relação estreita entre as políticas de regularização fundiária, especulação imobiliária e as ocorrências de desaparecimentos forçados

Em 2021 o Complexo do Roseiral, em Belford Roxo, sofreu com 100 dias de operações policiais com curtos espaços de tempo. Estas operações resultaram na morte de dezenas de pessoas, casos de autos de resistência, desaparecimentos forçados, familiares buscando pessoas mortas e carregando em carros de mão, e uma série de violações denunciadas por moradores.

Mas o ponto chave para entendermos essa atuação viria depois, com a inserção de um destacamento da polícia militar no território, projetos de habitação com criação de condomínios, obras em vias e praças públicas e saneamento básico.

Isso demonstra como o projeto de genocídio do povo negro tem ligações e raízes que vão para além de nossas análises contemporâneas. O genocídio acontece em diversas camadas da sociedade, que se consolida e se conforma a partir do projeto de exclusão de modos de vida, modos de ser e de se organizar social, geográfica e politicamente que não estejam dentro do arcabouço branco.
E eu só queria lembrar mais uma coisa: hoje, uma das principais lideranças das milícias que a gente tem no Rio de Janeiro é um pastor evangélico. Então, se a gente não entender as interfaces desse projeto político que está sendo colocado, a gente não vai conseguir, inclusive, enfrentar o Estado…

Um caminho: desfinanciar as polícias para investir em políticas sociais

O que estamos entendendo como possibilidade de construção de incidência é retirar o dinheiro público, dinheiro de tributos, nosso dinheiro, nossa contribuição individual para o estado da área de Segurança Pública e promover direito à vida.

Hoje, o Rio de Janeiro gasta 17,8 bilhões de reais com o financiamento da Política de Segurança Pública. É a segunda maior pasta desse estado, ela só perde para a Previdência Social. E se você somar, na verdade, as pastas de educação, de saúde, de saneamento, de cultura, de habitação, não dá o que é equivalente ao que é direcionado para a Segurança Pública. De 2021 a 2023, a gente vê o aumento dos gastos direcionados para a Segurança Pública, e eu gostaria de lembrar vocês de que era nesse momento que estávamos  passando pela pandemia de Covid-19.

O estado optou por aumentar gastos no arcabouço de Segurança Pública e tentar matar a Covid-19 na base da bala, em vez de promover saúde para a população. Do orçamento de 2023 para o de 2024, tivemos um aumento de R$2 bilhões para a Segurança Pública, e um corte no orçamento da área da assistência social de quase 10%. O que estamos entendendo como possibilidade de construção de incidência é retirar o dinheiro público, dinheiro de tributos, nosso dinheiro, nossa contribuição individual para o estado da área de Segurança Pública e promover direito à vida.

Em 2023, a partir de um processo de incidência política popular da IDMJRacil, conseguimos redirecionar R$ 3,4 milhões, que eram da pasta de Segurança Pública, para políticas sociais. Para garantir a manutenção da atividade do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, para Políticas de Enfrentamento ao Racismo Religioso e à Liberdade Religiosa, acesso a bolsas de estudantes dentro das universidades públicas e etc. É sobre isso que a gente está dialogando. Acreditamos que, ao nos esforçarmos para reduzir as armas e tecnologias de controle, vigilância e morte circulando pela cidade, a gente também promove o direito à vida.

A nossa intencionalidade é retirar dinheiro do financiamento da Política de Segurança Pública e redirecionar para políticas sociais. Redirecionar para uma refeição digna dentro do sistema prisional, redirecionar para uma escola decente, redirecionar para políticas de habitação e saneamento. Até que tenhamos condições e possibilidades de vivermos com autonomia e liberdade.

Obrigada.

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