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É possível construir uma sociedade sem polícias?

É preciso discutir com os pés no chão, mas sabendo que outros mundos foram, são e serão possíveis. Polícias são invenções sociais, e é um erro naturalizar sua existência

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por Guilherme Santana, da IDMJR

Trabalho como educador popular e voluntário com jovens de favelas há quase dez anos e, desde 2014, dou aulas na rede pública de ensino. O nosso público nas escolas, majoritariamente, é formado por jovens negros, de periferia e de baixa renda.

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Dei aula na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, por 6 anos e atualmente dou aula na capital, mas em ambos locais o público é de favelas e o perfil bem similar. Enquanto professor de sociologia volta e meia temas como violência urbana e segurança pública vem à tona nos debates em sala de aula. Sendo que violência urbana já fez parte dos temas abordados no currículo mínimo da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro.Por esses e outros motivos,abordo nas escolas e nos espaços de educação popular a questão da polícia e outras instituições de segurança pública na sociedade como algo social e histórico, e não de forma naturalizada.

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Logo, algumas questões são feitas no nosso dia-dia de trabalho. Como por exemplo: “quem aqui nesse espaço é/ou se considera negro ou negra? Quem de vocês já foi abordado por quaisquer motivos pela polícia na rua? Quem aqui confia na polícia? É possível viver em sociedade sem ter polícia? Nós conseguiríamos sobreviver de forma coletiva sem ter órgãos de segurança pública do estado?”

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A partir dessas questões que provocamos alguns debates. E precisamos pensar para além, com pés no chão, sem abstração, mas entendendo que outros mundos foram, são e vão continuar sendo possíveis.

Vivendo a nossa realidade, alguns dados gritam. Segundo o DATASUS a taxa de homicídios de brancos é de 34 a cada 100 mil habitantes [2]. O número é quase três vezes menor que o dos jovens pretos e pardos: são 98,5 assassinatos por 100 mil. Sendo que oito a cada dez pessoas mortas pela polícia em 2019 eram negras, de acordo com o  Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 [3].

Mesmo não sendo especialista em segurança pública, temos compromisso com as lutas sociais há bastante tempo. Construímos pautas e lutas coletivas e tentamos avançar em diversos debates, sendo que a segurança pública é um dos pontos que travamos cotidianamente. Então, a gente busca entender como princípio o que nós não queremos.  E grande parte das instituições do estado no sistema capitalista precisam ser rechaçadas. Dentre elas, a polícia.
É necessário desnaturalizar todas as instituições que temos em nossa sociedade, entender que elas foram historicamente fundadas e podem ser abolidas um dia.  Isso inclui a instituição policial e seu projeto de controle, cerceamento e punição de quem viola leis.

Segundo o intelectual francês Michel Foucault “a partir do século XVII, vai-se começar a chamar de ‘polícia’ o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado [4]”.  Podemos dizer que o aparato material, sua sofisticação e complexas funcionalidades nas sociedades em geral, e o próprio uso da instituição de forma oficial pelos Estados, que com o passar do tempo veio a se tornar e chamar-se de polícia, é recente historicamente.

Um exemplo dessa existência recente da ideia de um órgão de segurança é a origem da polícia no Brasil, que tem seu início com a Guarda Real, fundada em 1809 – um ano após a chegada da Família Real no país. A função da Guarda Real era proteger a Família Real, toda a corte e aliados que faziam parte da elite naquele período histórico. Hoje o símbolo da Polícia Militar (que teve seu germe na Guarda Real) é um brasão com duas armas protegendo uma folha de café e outra de cana de açúcar. Ou seja, uma instituição que desde sempre foi criada para proteger as elites, manter intacta a propriedade privada e conservar o que chamamos de “ordem pública”.

Sobre essa dicotomia ordem e desordem, certa vez o geógrafo anarquista Piotr Kropotkin disse que nesse sistema que vivemos “(…) a ordem é a miséria, a fome, tornadas estado normal da sociedade (…) A ordem é a mulher que se vende para alimentar seus filhos (…) é o operário reduzido ao estado de máquina [5]”.

Alguns trabalhos sobre o assunto precisam ser referendados como o do Iniciativa Direito à memória e Justiça Racial (IDMJR)[6] aqui no Rio de Janeiro, além do do Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (EPPEN-UNIFESP)[7], que periodicamente lançam trabalhos que monitoram, denunciam violações de direitos e buscam aprofundar a quem as instituições de segurança pública servem, atendem e matam dia após dia.

Então, falar de fim da polícia não é algo novo, nem isolado e é objeto de estudo por especialistas há décadas, e pauta de muitos movimentos sociais e políticos, no Brasil e no mundo. Outras lógicas de viver em uma sociedade sem coerção do estado de forma oficial na figura institucional da polícia, não só foram possíveis como ainda hoje seguem em curso.

E não precisamos ir tão longe para entender o quanto o Estado na institucionalização da polícia sempre foi extremamente prejudicial. Basta vermos os exemplos dos povos originários no Brasil e América, comunidades quilombolas e ribeirinhas. Podemos fazer esse traçado histórico na contemporaneidade também. Afinal, o massacre às comunidades indígenas e quilombolas permanecem há mais de 500 anos.

Se formos estender a outros povos originários em regiões da América, Ásia, sociedades e etnias diversas na África e Oceania, a lógica de extermínio também ocorre sempre a partir do Estado com aparato de órgãos policiais ou similares. Seja em conjuntura de conflitos armados entre nações ou política local deliberada.

Voltando à sala de aula, é notório o desconforto de nossos jovens de periferia quando falamos da instituição polícia e começamos a problematizar a sua existência. Muitos já foram ou possuem pessoas próximas que sofreram violências, foram abusadas e até mortas por esses agentes da segurança pública.

Quando falamos de fim da polícia em sala de aula muitos torcem o nariz e acham impossível, alguns até apoiam a polícia afinal “bandido bom é bandido morto” para alguns jovens que reproduzem o senso comum de seus familiares ou que estão acostumados a ver e ouvir cotidianamente. É preciso criar ou avançar ainda mais na cultura de autodefesa comunitária. Tentar, a partir das brechas do sistema, enxergar outras formas de a população que mais sofre violações policiais e do Estado em geral se defender.

Ou ainda podemos citar as revoluções sociais que estão acontecendo agora em Chiapas, no México, e Rojava, no Curdistão. Nos dois casos a questão da segurança pública é resolvida a partir da comunidade, sem intervenção de órgãos centrais do Estado e de forma comunitária. São territórios onde a construção de outra lógica social tem sido feita, inclusive com relação a legislação e relações de segurança interna de seus habitantes.

A lógica de segurança comunitária é uma realidade nos territórios citados, e ao mesmo tempo que a polícia nos grandes centros urbanos seguem matando a população negra, pobre e que mora em periferias. Tudo para defender as elites políticas e econômicas, além da manutenção da propriedade privada. É esse o papel da polícia desde o século XIX.

Se existe o estabelecimento de uma segurança comunitária em diversos locais do mundo e temos essa lógica de genocídio provocado pelo Estado tendo a polícia como instrumento dessa mortandade, porque não podemos começar a pensar outra lógica de segurança que não precise da polícia em cada rua, viela, esquina e bairro?

É mais que necessário aprendermos, ouvir, dialogar e colocar esse debate como pauta política.

Que pelo menos a discussão se inicie e avance em todos os espaços públicos, escolas, movimentos sociais e enfrentemos com franqueza os limites e possibilidades de termos um futuro com uma vida sem polícia.

——————————–
1-Professor de sociologia da rede estadual do Rio de Janeiro; Doutorando em História Comparada na UFRJ; Mestre em Educação pela UFRJ; Pesquisador do Coletivo de Pesquisas Decoloniais e Libertárias da UFRJ (CPDEL-UFRJ); Professor e militante do Pré Vestibular Machado de Assis, no Morro da Providência.
2-https://www.medicina.ufmg.br/jovens-negros-tem-27-mais-chances-de-serem-assassinados-que-os-brancos/
3-https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/10/18/oito-a-cada-10-mortos-pela-policia-no-brasil-sao-negros-aponta-relatorio.htm
 4-FOUCAULT, Michel. Segurança Território População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008  p. 421.
5-KROPOTKIN, Piotr. Palavras de um Revoltado. São Paulo: Editora Imaginário, 2005.
6- https://dmjracial.com/

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