Precisamos de dados transparentes para fazer política pública, diz pesquisadora
Para Laura Boeira, do Instituto Veredas, ciência e políticos precisam se aproximar. Coalizão de 40 organizações quer popularizar uso de evidências na criação de políticas públicas
Rafael Ciscati
11 min
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A psicóloga Laura Boeira trabalha para que governos tomem decisões baseadas na ciência. Desde 2016, Laura é diretora executiva do Instituto Veredas, uma organização social que constrói pontes entre centros de pesquisa e gestores públicos — aqueles responsáveis por desenhar e colocar em prática políticas que afetam a vida das pessoas. O objetivo é municiá-los com informações corretas, selecionadas de maneiras transparente, e capazes da apontar soluções para problemas enfrentados pela população. Geralmente, a tarefa é complicada, e evolve vencer resistências. “Fazer política informada por evidências significa aceitar que os achados dessas evidências podem ser contrários às opiniões e preferências do gestor”, afirma. “Exige uma certa coragem do tomador de decisão”.
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Esse cenário sofreu uma ligeira mudança durante a pandemia de Covid-19. De um lado, lembra Laura, ganharam fôlego discursos que desacreditavam a ciência. De outro, cresceu a procura por organizações e grupos de pesquisas capazes de ajudar gestores atribulados a encontrar as melhores respostas para enfrentar a crise sanitária. No início do mês de abril, essas organizações se reuniram para criar a Coalizão Brasileira pelas Evidências. O grupo agrega 40 organizações que pretendem colaborar entre si para incentivar a aplicação da ciência à gestão pública. “Queremos fortalecer essa pauta nacionalmente”, diz Laura.
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Segundo ela, a popularização das políticas públicas informadas por evidências esbarra em alguns desafios importantes: da propagação de notícias falsas à ameaça de um apagão estatísticos provocado pelo cancelamento do Censo Demográfico. Na última quarta-feira (28), o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu que o levantamento deve ser realizado ainda neste ano — ele tinha sido cancelada por falta de verbas. Mas pairam algumas incertezas: de acordo com funcionários do IBGE, instituto responsável pelo levantamento, não há mais tempo hábil para organizar o estudo. “Se não temos dados importantes e confiáveis como os do Censo, basicamente não sabemos ao certo o que aconteceu com a população ao longo de uma década”, diz Laura. “ Isso é um impeditivo na hora de procurar soluções que funcionem para as vidas das pessoas”.
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Brasil de Direitos: O que é política informada por evidências?
Laura Boeira: Para tomar uma decisão, qualquer político precisa estar bem informado. Precisa buscar dados que apontem o que ele está arriscando ao tomar uma decisão, ou que o ajudem a entender um problema. Mas essas evidências não podem ser tratadas como um cesto de maçãs: você não pode, simplesmente, enfiar a mão no cesto e tirar de lá a maçã de que mais gosta. Ou, nesse caso, a evidência que te agrada porque confirma suas posições. A política informada por evidência tem um conceito gêmeo que é o da transparência. Fazer políticas públicas informadas por evidência significa consultar diferentes fontes de informação de uma forma sistematizada. Ou seja, de uma forma em que eu explico exatamente o que estou buscando em cada fonte. Desse modo, todos os passos que eu tracei podem ser reproduzidos por outras pessoas. Mas isso não é uma ação, é um ciclo, dividido em várias etapas (entenda mais no final da página). A primeira etapa é, justamente, a de entender bem qual o problema que você está enfrentando. Se você não tem dados consistentes sobre quais as causas e as consequências daquele problema, corre o risco de procurar soluções para um problema inventado, e não para um problema de fato.
Os problemas inventados são comuns?
Isso acontece, por exemplo, quando se propõe a redução da maioridade penal. Inventa-se uma solução para um problema mal definido, que é a suposta alta criminalidade de pessoas jovens que colocam toda a sociedade em risco. Quem apontou a existência desse problema não examinou que dados sustentam essa afirmação, não verificou onde ocorrem essas infrações e conflitos com a lei, nem examinou de que forma esses conflitos poderiam ser prevenidos. Só inventou que a melhor forma é prender, o que já sabemos que não é efetivo. Essa primeira etapa, de definição do problema, é essencial, e envolve o uso de vários dados, de diferentes fontes. Por isso, trabalhos de abrangência nacional, como o Censo demográfico, por exemplo, são tão importantes para entendermos mudanças ao longo do tempo.
O orçamento para realização do Censo foi reduzido para uma fração do total original, e talvez ele não seja realizado em 2021. Qual o tamanho do prejuizo?
A premissa básica de fazer política pública, mas especialmente politica publica informada por evidencia, é conhecer o problema que você está enfrentando. Se não temos dados importantes e confiáveis como os do Censo, basicamente não sabemos ao certo o que aconteceu com a população ao longo de uma década. Temos dados locais, estimativas e projeções. Mas não temos como saber qual o tamanho dos desafios que precisamos enfrentar. A não realização do Censo vai afetar sobremaneira o bom entendimento dos problemas que temos no Brasil. Novamente: se você não entender o problema, você cria soluções para questões que não existem, ou que foram mal caracterizadas. Isso é muito grave. É um impeditivo na hora de procurar soluções que funcionem para as vidas das pessoas.
Como surgiu a Coalizão Brasileira pelo uso de evidencias?
A Coalizão era uma ideia embrionária desde o início do ano passado. Com a emergência da pandemia, surgiu uma demanda muito grande por evidências para amparar a tomada de decisões. Ao mesmo tempo, ganhou fôlego um discurso que desacreditava a ciência e o uso de estudos para embasar políticas públicas. Nesse cenário, percebemos que havia várias organizações brasileiras dedicadas a produzir evidências. Para políticas de saúde, por óbvio, mas também para políticas voltadas ao mercado de trabalho, para a educação, direitos humanos, e diversas outras áreas. Muitas vezes, essas organizações e grupos buscavam respostas para as mesas perguntas. Junto de quatro organizações parceiras, o Veredas começou a conversar sobre a necessidade de mapear essas organizações — e a necessidade de construirmos coisas juntos, para fortalecer essa agenda nacionalmente. Hoje, a Coalizão reúne 40 organizações. A gente acredita que ela mapeia boa parte das organizações brasileiras que tem o uso de evidências para informar políticas públicas como tema central. Muitos gestores públicos, no início da pandemia, se viram frente a uma crise anunciada, com poucas ferramentas par tomar a melhor decisão possível, e começaram a acionar essas organizações pedindo ajuda, de modo a tomar melhores decisões em um momento de crise.
Apesar dessa procura por evidências, você acredita que há um movimento anti-ciência ganhando espaço nos governos hoje?
Existe. Ele dialoga com o uso de notícias falsas, e com a premissa de que é possível tomar decisões somente a partir da opinião do gestor. É importante levar as opiniões dos gestores em consideração, mas isso não basta.No Brasil e no mundo, presenciamos vários discursos que tentaram desmerecer a ciência — como se a ciência não pudesse contribuir nesse momento, como se estudos não tivessem nenhuma validade, e como se a melhor solução fosse aquela definida em nível pessoal. Outra coisa que acontece em governos é o uso muito pontual de evidência. Quando você seleciona aquele estudo que diz exatamente o que você quer fazer na sua política. E aplica esses dados para dizer que você tomou uma decisão baseada em evidência. O uso utilitário de um estudo também não é benéfico para melhorar políticas públicas.
Como combater esse descrédito?
Essa é uma agenda da coalização. A forma de combater esse descrédito precisa ser criada conjuntamente. Não podemos desmerecer a forma como a informação chega na população e aos gestores. É verdade que existem gestores que desacreditam a ciência como uma agenda política. Mas há muita gente que desacredita porque existe um afastamento entre essas pessoas e o fazer científico. Essas pessoas não tiveram acesso a informação de qualidade de maneira amigável. Que lhes permitissem aplicar aquelas informações imediatamente. Precisamos enfrentar a desinformação, e precisamos afirmar que as políticas devem ser baseadas em dados, estudos e opiniões de atores-chave. Tudo isso de forma transparente. Mas a construção disso não pode ser destrutiva.
Destrutiva como?
A notícia falsa conseguiu chegar de forma simples na casa das pessoas e na mesa dos gestores. Isso, a ciência ainda não conseguiu fazer. A luta agora é para descobrir como fazer a ciência trilhar esse caminho. Como coalizão, a gente vai ter de abraçar esse tema a partir da disseminação, tradução e popularização do conhecimento. Para que diferentes pessoas, que não são letradas no mundo da pesquisa, possam sim pegar esse conhecimento, torná-lo seu, combinar com o conhecimento que têm da própria experiência — seja experiência da gestão, seja experiência de vida — , e aplicá-lo. Hoje, cruzar esse abismo é quase mais difícil que combater o próprio louvor às notícias falsas.
Para entender: como funcionam as Políticas Informadas por Evidências
O uso de evidências para a formulação de políticas públicas envolve uma série de etapas. Elas vão da identificação de um problema até o acompanhamento das medidas postas em prática para resolve-lo. O processo, explica Laura, precisa ser transparente: precisa demonstrar que a coleta de dados foi ampla (não foram selecionados somente aqueles dados que agradavam aos políticos) e precisa apresentar instruções para que outras pessoas refaçam o caminho trilhado pelos pesquisadores. Abaixo, explicamos o como funcionam quatro passos essenciais para esse processo.
1 – E o problema, qual é?
O primeiro passo é entender qual problema preciso ser enfrentado. “Se você não tem dados consistentes sobre quais as causas e as consequências daquele problema, corre o risco de procurar soluções para um problema inventado”, explica Laura. Nessa etapa, são usados diferentes dados: dados nacionais, como os do Censo demográfico. Ou entrevistas a determinadas comunidades. A ideia é reunir informações para entender melhor a realidade.
2- Prós e Contras
Uma vez definido qual o problema, os pesquisadores começam a analisar quais as possíveis soluções. Para isso, eles consultam estudos científicos que já tenham tratado do assunto. Esses estudos são classificados: do melhor (com evidências mais fortes!) ao menos interessante. A seguir, reúnem essas conclusões em um trabalho chamado de síntese de evidências. Um documento resumido, que traduz, em linguagem simples, as conclusões dos estudos científicos.
3 – Isso serve para mim?
Há casos em que os pesquisadores querem encontrar soluções para problemas bem brasileiros — mas todos os estudos sobre o assunto foram feitos fora do país. Será que as conclusões servem para a nossa realidade local? É essa a pergunta respondida nessa etapa do trabalho. Com a síntese de evidências em mãos, a equipe vai a campo falar com a população, com políticos, com movimentos sociais. Tudo isso para tentar descobrir quais as chances de a solução apontada pelos estudos “pegar” quando implantada no mundo real.
“Tem uma história muito engraçada que se passou no município de Piripiri, no Piauí”, lembra Laura. A cidade sofria com surtos anuais de dengue. O secretário de saúde de então encontrou uma solução barata para o problema: um peixinho que se alimentava das larvas do mosquito Aedes aegypti, e que poderia ser colocado nas caixas-d’água dos munícipes. A ideia parecei perfeita, até esbarrar na realidade. “Quando o secretário foi conversar com a população, a resistência foi imensa. Ninguém queria colocar peixe na caixa-d’água, por medo de a água começar a cheirar mal”. Para aquele contexto, a solução que era boa no papel, não funcionaria.
4- A política funciona?
Nessa etapa, a política pública foi implementada. É hora de saber se ela de fato funciona, e avaliar quais seus resultados.
Precisamos de dados transparentes para fazer política pública, diz pesquisadora
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