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Qual o resultado das operações policiais no Rio de Janeiro?

A partir dos anos 1990, operações policiais violentas cresceram em frequência no estado. Não há ganhos para a segurança pública. Há horror para quem mora em favelas e periferias

Rafael Ciscati

14 min

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Passava pouco das sete da manhã da quinta-feira, 6 de maio, quando Eliene Vieira ouviu os primeiros tiros. Vários estampidos altos, com pouco ou nenhum intervalo entre um e outro. Assustada, correu até a janela de casa, para saber do que se tratava. Há quase sete anos, Eliene mora com os filhos em uma casa na favela de Manguinhos, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Não muito longe dali, do outro lado da linha de trem, ergue-se a favela do Jacarezinho. Da janela de casa, Eliene observou quando um helicóptero blindado da polícia civil sobrevoou a fronteira entre as duas comunidades. Era o início de uma operação policial. Por um breve instante, Eliene se sentiu paralisar: “Não dava para saber ainda para onde eles iam. Se vinham para Manguinhos, ou se iam para algum outro lugar”, conta. Não demorou muito, mensagens alarmadas começaram a pipocar no celular de Eliene, uma após a outra. “De início, eram pessoas contando que uma operação estava acontecendo no Jacarezinho. E pedindo para todo mundo se proteger em casa”, lembra ela. “Mas logo vieram os relatos de que tinha gente morrendo. Moradores amedrontados, pendindo para a gente chamar o pessoal dos direitos humanos”.

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Na manhã daquela quinta-feira, a Polícia Civil do Rio de Janeiro deflagrou, na favela do Jacarezinho, aquela que seria a operação policial mais letal da história do estado. Durante cerca de nove horas, 200 agentes percorreram as ruas da favela. Ao fim do dia, 28 pessoas tinham sido mortas. Entre elas, um policial. 

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A ação foi condenada por organizações de defesa dos direitos humanos. Na avaliação de Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, tratou-se de uma chacina. “As pessoas talvez estejam com dificuldade de escrever na mesma frase ‘polícia’ e ‘chacina’, possivelmente em uma espécie de negacionismo. Pois dizer que a polícia cometeu uma chacina é realmente algo chocante”, disse ao jornalista Leonardo Sakamoto, do portal UOL. Na sexta-feira (7), o porta-voz de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) Rupert Colville afirmou que as polícias brasileiras têm um histórico de uso desproporcional da força, e cobrou que a operação no Rio de Janeiro seja investigada de maneira “independente, completa e imparcial, de acordo com padrões internacionais”. 

Em casa, de celular em punho, Eliene ainda não pensava na repercussão internacional da chacina. Apreensiva, ela acompanhava as mensagens que chegavam conforme a polícia avançava na favela. “Uma mãe me escreveu, pedindo ajuda, temendo pela vida do filho. Era insuportável”. O terror de ver um filho na mira da polícia é uma dor que Eliene conhece bem. Desde 2014, ela é parte de um grupo de mulheres que acolhem famílias vítimas da violência do Estado. As Mães de Manguinhos, como o grupo foi batizado, se encontraram depois que Johnatha Oliveira Lima, de 19 anos, foi morto por um tiro nas costas, disparado por um policial militar. Na tentativa de articular sua dor, e cobrar justiça, a mãe de Jonatha, Ana Paula Oliveira, se uniu a outras mães que compartilhavam perdas parecidas. Desde então, o grupo oferece auxílio e escuta a mulheres cujos filhos, maridos ou sobrinhos foram mortos ou presos — e que nem sempre tem a quem recorrer para se fazer ouvir. “Quando acontece uma operação policial, mesmo que não seja na nossa favela, a gente sofre”, diz Eliene. “Por que a gente sabe que, depois da operação, uma mãe terá perdido seu filho. E esse é um sofrimento que a gente conhece”. Naquela manhã, mesmo sob o som dos tiros, Eliene e as demais Mães de Manguinhos decidiram ir até o Jacarezinho. Era uma tentativa de oferecer ajuda e, quem sabe, frear a barbárie em curso. 

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Desde junho de 2020, já em plena pandemia do novo coronavírus, as polícias do Rio de Janeiro mataram 944 pessoas. Não foi uma exceção: pelo menos desde 2015, a letalidade das polícias fluminenses cresce ano a ano, sem interrupções. Em junho do ano passado, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, numa decisão liminar, que ficava proibida a realização de operações policiais no estado enquanto durasse a pandemia. Não bastou. Depois de um período de queda, o número de operações policiais em favelas voltou a subir a partir de outubro do ano passado. Elas não tornaram o Rio de Janeiro mais seguro. Para as populações que vivem em territórios de favela e periferias, as operações são sinônimo de terror e morte. “Por causa da minha cor e do meu CEP, eu tenho um alvo estampado no peito”, diz Patrícia Gomes de Oliveira (a tia de Johnatha, morto em 2014). “O Estado nos trata como o inimigo que deve ser eliminado”. 


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A ideia de que o Estado enfrenta um inimigo que deve ser neutralizado não é nova na história do Brasil. “Desde que o país foi invadido, há mais de 500 anos, os governos apontam grupos a combater”, afirma o historiador Fransérgio Goulart, da Iniciativa Direitos à Memória e Justiça Racial (Idmjr). “De início, havia os indígenas. Depois, a população negra, que precisava ser controlada. Com o tempo, essas imagens vão sendo atualizadas”. 

Na cidade do Rio de Janeiro, a imagem do inimigo — e os meios para neutralizá-lo — ganharam uma nova roupagem, mais violenta, a partir dos anos 1990. De acordo com a socióloga Márcia Pereira Leite, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o fim dos anos 1980 viu crescer, na cidade, uma espécie de medo difuso. Aumentava a frequência de novas modalidades de crimes: “Ao longo dos anos 1990, o Rio de Janeiro adquiriu o perfil de uma cidade violenta. Assassinatos, roubos, assaltos, sequestros, arrastões nas praias, confrontos armados entre quadrilhas rivais, ou entre essas e a polícia, ganharam as ruas de uma forma inusitada por sua frequência, magnitude […] e repercussão na mídia local e nacional”, escreve ela no artigo Entre o Individualismo e a Solidariedade, dilemas da política e da cidadania no Rio de Janeiro, publicado no ano 2000. 

No imaginário nacional, a fama de cidade maravilhosa passa a disputar espaço com a reputação de cidade violenta. As soluções propostas para o problema da segurança pública variaram conforme diferentes governantes, ora mais progressistas, ora mais conservadores, sucederam-se na prefeitura e no governo do Estado. Mas, segundo Márcia, firmou-se a ideia de que a cidade estava em guerra. E que, para o problema da violência, eram aceitáveis soluções violentas. Desde que restritas a certos espaços: “Cria-se uma narrativa de que as favelas estavam dominadas pelo tráfico de drogas. E, para resolver esse problema, potencializa-se uma política de confronto”, diz Goulart. 

Segundo o professor Michel Misse, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a partir dos anos 1990, os governos do Rio de Janeiro aumentam o investimento na compra de armamento cada vez mais letal, como fuzis .762 e veículos blindados — os caveirões. Investe-se na capacitação de policiais para atuar em contextos de guerrilha urbana. “Todo esse aparato de guerra foi empregado em operações de incursão cada vez mais frequentes em favelas, com o objetivo de fazer frente ao poder local dos traficantes”, escreveu Misse em trabalho de 2011. A polícia, que já era violenta na favela, ganha os meios necessários para ser mais letal. 

O foco dos confrontos não foi escolhido ao acaso. “Sempre repito uma frase do [midiativista] Raull Santigo: a droga tem na cidade toda. Intervenção militar com veículo blindado, só tem na parte negra da cidade”, diz Pedro Paulo Santos da Silva, pesquisador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). Nascido no Jacarezinho — onde não mora mais — Silva estuda como o racismo que estrutura a sociedade brasileira transborda para a atuação das polícias, define quem formula as políticas públicas de segurança e quais políticas são postas em marcha. “Historicamente, a política de guerra as drogas é orientada, desde o começo, ao controle dos corpos negros”. 

A opção pela solução violenta contra a violência não tardou a deixar marcas. Entre 1998 e 2003, o número de mortos em autos de resistência — quando o policial afirma que matou em legítima defesa — no rio de Janeiro saltou de 355 para 1195.  Os números continuaram a crescer ano após ano. Em 2019, as polícias do Rio de Janeiro mataram, até agosto, uma média de 156 pessoas por mês. “Apesar do uso da força na atividade policial ter previsão legal […], isso pode indicar indicar que o uso da força pelas polícias do Rio de Janeiro esteja em dissonância com parâmetros técnicos e legais”, escreveram, em 2020, os pesquisadores Joana Monteiro, Eduardo Fagundes e Júlia Guerra, do Centro de Pesquisas do Ministérios Público do Estado do Rio. 

No trabalho, eles apontam que essa sucessão de mortes não bastou para tornar o estado mais seguro. O grupo analisou o período que vai de 2003 a 2019. Constatou que cada nova morte decorrente de intervenção policial está associada a um aumento de apenas 1,7% nos registos de apreensão de drogas. Não resulta em maior número de prisões, mas está associado a um aumento de 1,6% dos homicídios dolosos (quando há intenção de matar). Crescem também os roubos de rua (1,4%), os roubos de veículos (2,9%), e os roubos de carga (2%).  Segundo os autores não é possível apontar uma relação direta de causa e efeito entre esses incidentes. O trabalho não permite dizer, por exemplo, que o número de roubos de carga aumentou porque a polícia matou mais. Mas os dados indicam que a ação violenta da polícia não resulta em diminuição da atividade criminal. 

Não há ganho para a segurança pública — mas há prejuízo de todo tipo para quem vive em favelas e periferias. Os autores apontam que a recorrência de operações policiais “leva a morte de inocentes, interrupção de atividades econômicas e de provisão de serviços”. As pessoas deixam de ir ao trabalho e as crianças às escolas. O trauma, para quem sobrevive, dura uma vida inteira. “O estado brasileiro violenta seus cidadãos desde muito cedo. A pessoa cresce normalizando ter que correr para se esconder de tiro”, diz Pedro Paulo Silva. Durante a pandemia, a população fica emparedada entre o vírus e a mira da polícia. “A gente sabe que pode morrer. Só não sabe se vai ser por causa do vírus ou por causa do Core”, diz ele, se referindo à Coordenadoria de Recursos Especiais, uma unidade da polícia civil do Rio de Janeiro. 

Eliene Vieira, do Mães de Manguinhos, conta que o terror de uma operação policial tem reflexos físicos que perduram. “A sensação que eu tenho é de que eu vou ter um ataque cardíaco”, conta. A reação seguinte é a de passar a mão no celular em busca do paradeiro de filhos, amigos, parentes. A tensão resiste no corpo por dias. “No dia seguinte a uma operação, eu preciso tomar analgésico para dor”. 

Foi essa atmosfera de tensão e horror que Eliene e suas companheiras encontraram ao chegar no Jacarezinho naquela quinta-feira. Era por volta das 11h, e representantes da Defensoria Pública do Estado e de movimentos sociais se reuniam na quadra em frente à entrada da comunidade. Aos fundos, os moradores permaneciam trancados em casa. “ Quando começa uma operação policial, parece que o ar da favela muda”, diz Eliene. “Normalmente, há crianças brincando, há música, há o barulho das pessoas trabalhando. Quando começa uma operação, você o pavor no rosto das pessoas. Elas têm medo até de falar”.

Esse padrão de operações violentas tem efeitos nefastos para a própria polícia. Elas “colocam em risco as vidas de policiais, destroem seu relacionamento com as comunidades e contribuem para elevados níveis de estresse psicológico”, afirma um relatório da organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch de 2015.  “Depois de uma operação, a gente fica aqui, enxugando o sangue da calçada”, diz Patrícia Gomes de Oliveira, do Mães de Manguinhos. “As pessoas têm medo de perder o celular em um assalto. A gente tem medo de perder a vida vítima da polícia”.

A despeito dos resultados negativos, essa política do confronto ganhou novo fôlego no Brasil dos últimos anos. A ideia de que as polícias devem ter autorização para matar encontrou eco no discurso de governantes. “Ganharam destaque programas políticos que defendem, enfaticamente, que ‘bandido bom é bandido morto’. Em função disso, o número de pessoas mortas pelas policias  vem crescendo nos últimos anos no Brasil, em vários estados. E isso é consequência dessas políticas que triunfaram eleitoralmente”, disse o sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), à Brasil de Direitos em 2020. “A raiz do problema no Brasil, hoje, é política. E, sem mudança política, nenhuma outra medida faz sentido”.

No caso da chacina de Jacarezinho, o historiador Fransérgio Goulart  avalia que a extensão da violência foi , ao menos em parte, resultado do enfraquecimento de mecanismos que se encarregavam de exercer algum nível de controle sobre a ação policial: “Desde 2019, há uma movimentação no sentido de garantir maior autonomia para a atuação policial”, diz ele. As medidas incluem, por exemplo, a extinção da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro pelo então governador Wilson Wietsel. As polícias civil e militar ganharam, cada qual, o status de secretarias. “Mais recentemente, foi extinto o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp)”. O grupo, parte do Ministério Público, tinha por atribuição fazer o controle externo da atividade policial. Hoje, somente uma fração dos crimes cometidos por policiais é investigada. Especialistas em segurança pública temem que, com o fim do Gaesp, esse número diminua ainda mais.

Na avaliação de Pedro Paulo Santos Silva, do CESeC, no entanto, reverter esse quadro vai exigir que o campo progressista paute discussões que, na opinião dele, estão interditadas. E que vão além do debate sobre o controle externo da atividade policial. Caso das propostas de desfinanciamento e de abolição das polícias. “Muito frequentemente, a gente busca exemplos de como reduzir a letalidade policial em experiências internacionais”, afirma. “ Mas ninguém fala: olha, nos EUA estão discutindo o desfinanciar as polícias. Essa ideia não é trazida para debate”, diz ele. Essa interdição, opina, é reflexo de outra expressão do racismo que estrutura a sociedade brasileira: no geral, as políticas de segurança pública são desenhadas por pessoas brancas, que vivem distantes da realidade de perdas das favelas. “Muitas delas são pessoas qualificadas e bem intencionadas, comprometidas com a ideia de que a polícia não pode matar. Mas elas olham para o problema de uma perspectiva que  interdita discussões mais ousadas”, diz ele. “Para nós, pesquisadores negros nascidos em favelas, a abolição das polícias é uma discussão fundamental”.

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