Quando o ato da defesa é um privilégio
É alentador ver uma mãe branca defendendo os filhos negros. Mas dói saber que as vozes das mães negras são sufocadas pelo racismo mesmo quando defendemos nossos filhos e filhas
Maria Teresa Ferreira
5 min
Navegue por tópicos
Ser branco, viver longe da periferia, ter condições de acessar educação, cultura e lazer, continua sendo um privilégio de uma parte pequena da população brasileira. Quando corpos negros alcançam esses direitos em qualquer tempo, espaço, idade — e principalmente gênero — sempre haverá quem os indique o elevador de serviço. O racismo, afinal, atravessa classes sociais.
Fui atravessada pelas agressões que sofreram os filhos do casal Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso no último fim de semana em um restaurante em Portugal. Como mãe de um adolescente negro, me solidarizo com eles e, mesmo estando longe, sem que eles tenham a menor ideia de quem eu sou, carinhosamente os abraço como fiz inúmeras vezes com meu filho.
Contudo, algo mais me surpreendeu nesse episódio: havia uma família de turistas angolanos no restaurante, que também foi alvo de insultos racistas. Deles, não se ouviu protesto. Fiquei me perguntando: o que os calou? O que silencia a voz de outras famílias que vivenciam infâncias negras?
Defender as crias como leoas tem um custo físico e emocional grande. E na equação que define quem tem ou não direito à defesa, a balança da justiça dificilmente pende a favor das mulheres negras que têm a maternidade no currículo. O peso da empatia, do acolhimento, da voz impregnada de impropérios pende para as famílias construídas pela branquitude, porque elas têm a proteção da sociedade para bradar em defesa dos seus.
Todas as crianças negras, sem exceção, sobretudo os meninos negros, seguem uma cartilha de recomendações para se proteger de olhares tortos, comportamentos discriminatórios e, claro, do enquadro da polícia:
- esteja sempre limpo;
- não ande de boné em nenhuma hora do dia, menos ainda da noite;
- nunca ande descalço e sem camisa;
- chinelo só na praia e olhe lá;
- quando sair do futebol, se vista;
- tenha sempre a identidade na carteira;
- à noite, ande por rua iluminadas.
Essas são frases que todas as mães de crianças negras vão falar ou já falaram. No momento em que qualquer dessas regras de sobrevivência é quebrada, nem todas as mães vão contar com a solidariedade da sociedade a seu favor. Muito pelo contrário. E esse deveria ser o norte das discussões que tratam das violências que sofrem as crianças negras e seus responsáveis.
A maternidade já é uma tarefa árdua por si só. Quando ela vem acompanhada do recorte de raça especificamente, ela deixa nas mulheres negras e mães uma ferida aberta. Porque na imensa maioria das vezes, enfrentamos situações de violência racial e não podemos reivindicar respeito aos nossos direitos. Como escreveu a jornalista Eliane Alves Cruz, no jornal O Globo — ao falar sobre a reação de Giovanna Ewbank — “É especialmente alentador ver que uma mulher branca, ciente dos seus privilégios e responsabilidades verbaliza tanta coisa entalada em muitas gargantas”. Mas é desalentador saber que, se reagisse da mesma maneira, uma mãe negra seria chamada de agressiva.
Nossas vozes são sufocadas pelo racismo mesmo quando defendemos nossas crianças. E acabamos afogadas nas lágrimas da impotência que a cor da nossa pele nos impõe.
A voz da mãe de Miguel, Mirtes Santana, foi sobreposta pela justiça quando a condenação de Sarí Corte Real, foi suspensa. As Mães de Maio, rede de mães de vítimas da violência do Estado, em São Paulo e Baixada Santista, que trabalha sem o reconhecimento do grande público para preservar a memória e justiça dos seus filhos e parentes, mortos e desaparecidos. As mães da Chacina da Candelária, que todo ano fazem um ato em favor da vida, nas escadarias da igreja, onde 8 jovens em situação de rua foram assassinados pela polícia no Rio de Janeiro.
Quem as ouviu? Quem ampliou suas reivindicações? Quem acolheu suas dores? Quem validou a importância da memória dos seus filhos?
A ausência do cumprimento das leis, a certeza da impunidade, o desconhecimento do estatuto da igualdade racial, o descaso com a lei 10639 (que definiu a obrigatoriedade do ensino da história da África nas escolas) são fundamentais para entender e ampliar a discussão sobre quem são as vozes que podem reivindicar o direito de existir e se defender.
O privilégio branco, para ser usado em favor da luta antirracista, precisa precisa questionar radicalmente o funcionamento do Estado, a ineficácia das leis, a parcialidade do judiciário e a violência policial. Todas essas questões dizem respeito a uma luta que é coletiva, que vem de longe e que perde a legitimidade quando é discutida a partir do lugar de privilégio. Porque esse lugar desconsidera outros corpos e deixa de lado um cotidiano de reproduções violentas que atravessam as famílias que experienciam infâncias negras.
Você vai gostar também:
Cis e trans: qual a diferença dos termos?
3 min
Saiba o que pode e o que não pode em uma abordagem policial
19 min
4 escritoras lésbicas brasileiras que você precisa conhecer
3 min
Entrevista
Ver maisMarielle: como a violência política contra a mulher cresceu desde o assassinato da vereadora
8 min
Com acordo em Alcântara, Estado se antecipa à condenação internacional, diz ativista
9 min
Glossário
Ver maisConsciência negra: qual a origem da data celebrada em 20 de novembro
6 min
Abdias Nascimento: quem foi o artista e ativista do movimento negro
8 min