Quilombolas de Alcântara temem remoção pós pandemia
Governo Bolsonaro, que comparou moradores de quilombos a animais, busca desocupar área no Maranhão, mas acordo com procuradores adiou decisão
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por Manuela Rached Pereira, especial para a Ponte
Palco da mais populosa área quilombola do país, a cidade de Alcântara, no Maranhão, ganhou visibilidade nas últimas semanas após uma resolução do governo federal, publicada no dia 27 de março, que, em plena pandemia de covid-19, anunciou a remoção de centenas de famílias da região para dar início ao projeto de expansão do Centro de Lançamentos Espacial de Alcântara. A decisão foi contestada pelo MPF (Ministério Público Federal) e adiada na quinta-feira (2/4) pela Procuradoria Geral da União.
Na região maranhense, que abriga 152 comunidades quilombolas, formadas por 3.350 famílias e mais de 12.900 pessoas, segundo os dados mais recentes do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), a maioria dos moradores vive da agricultura alimentar e da pesca – condição que eleva a preocupação das cerca de 800 famílias afrodescendentes que seriam reassentadas com a implementação da medida federal.
Segundo lideranças comunitárias da região, a remoção de quilombolas de Alcântara já estava no radar das comunidades locais, mas o momento do anúncio pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido) surpreendeu seus moradores, que há semanas se isolam em quarentena.
Quilombo Itamatatiua, Alcântara (MA), em junho de 2009 | Foto: Divulgação/ Ministério de Minas e Energia
“Pelo nosso histórico, a gente já esperava algo nesse sentido, mas não que fosse agora, num momento em que todo mundo está voltado para o combate ao coronavírus”, afirma Dorinete Morais, do Mabe (Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara). “Parece que a gente recebeu uma porrada, ficamos zonzos, angustiados, mexeu com a estrutura emocional de todo mundo aqui”, conta.
A liderança, que pertence ao quilombo Canelatiua, ressalta que as comunidades da região enfrentam dificuldades desde o início dos anos 80, quando, durante a ditadura militar, o Centro de Lançamentos foi instalado no município. Ela afirma, porém, que a situação piorou nos últimos anos. “Faz 40 anos que temos esse empreendimento aqui e há 40 anos que resistimos a ele, mas depois da entrada de [Jair] Bolsonaro na presidência piorou muito. Com ele, a gente percebeu que as coisas poderiam avançar muito contra a gente.”
Bolsonaro foi processado por racismo por ter se referido a quilombolas como animais, durante uma palestra, em 2017, no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro. “Fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gastado com eles”, declarou na época. A denúncia do Ministério Público Federal acabou rejeitada pela STF (Supremo Tribunal Federal).
De acordo com Danilo Serejo, cientista político e assessor jurídico do Mabe, a expansão da base de Alcântara faz parte do projeto original do Estado brasileiro, que em 1883 expulsou 312 famílias quilombolas da região por meio de forças militares. “Então, de certa forma, essa resolução não surpreende tanto porque desde então vivemos num campo de incerteza quanto ao nosso futuro”, avalia.
Artesanato produzido no quilombo, em 25/9/14 | Foto: Karina Zambrana – SGEP/MS
Serejo, contudo, ressalta: “Embora, as comunidades quilombolas vivam sob ameaça constante de serem expulsas de suas terras, essa é primeira vez que essa medida é formalmente publicizada por um governo desde a redemocratização. Nesses 40 anos nós já atravessamos sucessivos governos de esquerda e direita e sempre houve essa ameaça, mas nenhum deles formalizou isso”.
O compromisso do governo de adiar a remoção das famílias quilombolas enquanto perdurar a pandemia de covid-19 foi assumido ontem, durante reunião via videoconferência com representantes do Ministério da Defesa, MPF e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI), que incluiu a presença do brigadeiro José Vagner Vital,vice-presidente da CCISE (Comissão de Coordenação e Implantação de Sistemas Espaciais), da Força Aérea Brasileira, e do coordenador da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (6CCR), Antônio Bigonha.
Segundo Bigonha, durante o encontro virtual, procuradores do MPF ressaltaram a “importância de incluir os quilombolas na elaboração do projeto”, respeitando a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), reconhecida como norma constitucional pelo STF e que impõe consulta prévia aos “povos interessados (…), cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”.
Quilombo Itamatatiua, Alcântara (MA), em 24/9/14 | Foto: Karina Zambrana – SGEP/MS
Em resposta, segundo Bigonha, o governo, por meio do brigadeiro José Vagner Vital, afirmou que está elaborando um “anti-projeto”, com tratativas que incluem a escuta às comunidades quilombolas de Alcântara, mas que ainda dependem de um mapeamento prévio do Incra, a ser iniciado após o período de pandemia.
“Eu entendi que eles têm um calendário a cumprir e querem fazer os lançamentos até 2022. Mas eu disse que incluir os quilombolas nas decisões vai abreviar e muito a conclusão do projeto. Deixando essas comunidades à margem do debate, quando o projeto for concluído, haverá muita insatisfação”, afirma o procurador.
Ainda segundo Bigonha, é preciso garantir que as comunidades quilombolas sejam tratadas com dignidade. “Elas já foram muito maltratadas no passado, já houve uma remoção de famílias para a instalação da base de Alcântara que foi desastrosa e não pode se repetir. Então, o governo está sabendo que estamos todos em alerta”, conclui.
Outro lado
Questionado pela Ponte sobre os próximos passos do governo, o Ministério da Defesa, sob o comando do general Fernando Azevedo e Silva, não respondeu.
Artesanato produzido no quilombo, em 25/9/14 | Foto: Karina Zambrana – SGEP/MS
Já o governo do estado do Maranhão, de Flávio Dino (PCdoB), por meio de nota divulgada na última sexta-feira (27/3) pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular, se manifestou contrário ao posicionamento do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro que “autoriza o remanejamento de famílias quilombolas na área de consolidação do Centro Espacial de Alcântara, face aos interesses de expansão da base aeroespacial naquele município”, uma vez que a decisão “desrespeita o direito à consulta prévia, livre e informada às comunidades atingidas para a edição de atos administrativos que lhes causem impactos”.
Texto originalmente publicado em: Quilombolas de Alcântara (MA) temem perder suas casas após a pandemia
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