Rio Grande do Norte: punitivismo e tortura nas prisões estão na raiz de ataques
Ações truculentas do Estado fortaleceram facções, que recorrem à violência para manifestar demandas de pessoas encarceradas. Solução passa por coibir violações nas prisões
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por Juliana Gonçalves Melo
Antropóloga, Pesquisadora do Sistema Prisional, Professora da UFRN.
Juliana_melo2003@yahoo.com.br
Francisco Augusto Cruz de Araújo
Cientista Social, Pesquisador do Sistema Prisional, Professor do IFRN/UAB, Coordenador da Rede de Apoio a Egressos do Sistema Prisional do Rio Grande do Norte – RAESP.
fcaugusto@gmail.com
RESUMO: No começo de março de 2023, uma onda de ataques, organizados por uma facção criminosa, aterrorizou cidades do Rio Grande do Norte. Para os autores, a ação violenta é injustificada, e foi reflexo das condições desumanas em que vivem pessoas encarceradas no sistema prisional potiguar. Em 2022, organizações de defesa dos direitos humanos denunciaram 253 casos de tortura no cárcere ao sistema de Justiça do Rio Grande do Norte. Os casos não foram apurados. Os autores destacam que, perante a inação do Estado — que não coíbe violações de direitos nas prisões – as facções criminosas saem fortalecidas. Estas, por sua vez, recorrem à violência como uma forma de exercer pressão e manifestar as demandas das pessoas encaradas. Esse ciclo, que se repete ano a ano, está na raiz dos ataques violentos observados ao longo do mês.
No caso específico do Rio Grande do Norte, o quadro se agravou a partir de 2002, com a chegada de uma facção do crime organizado paulista ao estado. Em 2012, o braço potiguar dessa facção se dividiu, depois de conflitos internos. Desde então, os dois grupos protagonizam uma disputa que resultou na disparada do número de mortes violentas na região.
Nesse contexto, soluções punitivistas, que resultem em mais prisões e em condições de aprisionamento ainda mais precárias, são ineficazes.
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O mês de março de 2023 começou com mais uma onda de ataques às cidades do Rio Grande do Norte (RN). A quarta desde 2016. Desta vez, além de incêndiar a ônibus, prédios públicos e carros, os “ataques” se diferenciaram dos anteriores por sua extensão (nunca antes foram tantos municípios atingidos), duração no tempo (10 dias) e números (quase 300). Mesmo depois da chegada da Força Nacional, medida emergencial geralmente acionada nesses momentos de crise, os “ataques” só cessaram com a publicação de uma ordem (chamada de “salve”) emitida pelo Sindicato do Crime, facção local que decretou o fim desses atos.
Até que a situação fosse controlada, porém, muitas cidades, especialmente a capital do estado, Natal, tiveram suas rotinas interrompidas: aulas suspensas e escolas fechadas, ônibus e trens pararam de circular e em muitas regiões da cidade, o comércio fechou as portas. Em Natal reinou, novamente, um clima de insegurança e medo, amplamente alimentado pelas redes sociais. Por que novamente? O que fazer para conter esses “ataques”? De novo, o tema ganhou a imprensa e jornalistas procuraram especialistas para repetir as mesmas questões: o crime organizado controlou o Estado? Como podemos entender esses acontecimentos? As medidas adotadas são eficazes?
Várias teorias foram mobilizadas. Para alguns, os atos dizem respeito a interesses contrários ao governo do estado. Há quem diga que são uma reação ao crescimento de grupos milicianos no estado e ao aumento de homicídios nas periferias nos últimos meses. Há quem diga que esses ataques são atos terroristas, provocados por criminosos instalados em nossos presídios e que querem regalias (e não de dignidade humana, como entendemos). Acreditamos que nenhuma dessas questões pode ser descartada, mas é reducionismo pensá-las isoladamente e sem mencionar o que é estruturante em todos os eventos: as denúncias de violações de direitos nas prisões locais.
Como observamos ao longo dos anos, todos os “ataques” tentam denunciar, através da violência (que é injustificável), situações de graves violações de Direitos Humanos e demandam a reversão desse contexto. As prisões do Brasil são mundialmente conhecidas como espaços de profundas violações dos Direitos Humanos. Mas no Rio Grande do Norte, a diferença é que estas violações são sistematicamente reproduzidas sob a alegação de um modelo de gestão prisional de sucesso, sendo muitas vezes tratadas como legítimas e garantidoras da ordem nos espaços prisionais.
Quando falamos em violação aos Direitos Humanos nas prisões do Rio Grande do Norte, não tratamos de situações pontuais, mas de um sistema marcado pela prática regular de tortura física e psicológica e por várias privações, como ao alimento adequado, o acesso à água portável, à assistência médica elementar e a melhores condições de tratamento para com seus familiares, que são tratados como “bandidos” ou potenciais “bandidos” e submetidos a diversas violências nos momentos de visita ou quando procuram o presídio para deixar os mantimentos dos seus familiares presos.
Os egressos do sistema prisional reiteram aquilo que diversos organismos locais, nacionais e internacionais denunciam: a tortura é o modus operandi do sistema prisional potiguar. Os sobreviventes das prisões listam dezenas de práticas, que vão desde o sorteio de presos para asfixia com spray de pimenta, a quebra de todos os dedos das mãos, tiros com armas não letais, distribuição de alimentação podre, privação de água para consumo ou higiene das celas e um superencarceramento que normaliza a condição de vinte e cinco presos em celas construídas para dez pessoas.
No cenário local, a indiferença às organizações de promoção e defesa dos Direitos Humanos é sistemática. O Ministério Público, juízes corregedores e gestores públicos do poder executivo são indiferentes e coniventes com as práticas de ilegalidades e violações à dignidade das pessoas presas. A título de exemplo, o representante do Centro de Referência de Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte afirmou, em palestra pública proferida em abril desse ano, que no ano de 2022, protocolou junto à Secretaria de Administração Penitenciária e ao Ministério Público, 253 denúncias de violações de Direitos Humanos como as aqui supracitadas. Todas elas foram arquivadas e não tiveram encaminhamento formal. Isso tem consequências e os ”ataques” são também respostas a esse estado de coisas inconstitucional.
Dito de outro modo, os “ataques” de abril de 2023 não são novidade e apontam para a reprodução dos mesmos ciclos. O caso do Rio Grande do Norte, por outro lado, é interessante na medida em que evidencia que, diante do não acolhimento de denúncias formais no sentido coibir a tortura, por exemplo, as facções locais se fortalecem e acionam a violência como forma de expressão central. Contraditoriamente, também evidenciam que a violência é acionada tanto pelos “criminosos” como pelas “forças da ordem”, que primam pela ampliação do punitivismo e pela continuidade da guerra – dentro e fora das prisões.
O fortalecimento do crime organizado no Rio Grande do Norte
Se esse quadro não é novo é preciso remontar, brevemente, ao contexto de crescimento e consolidação do crime organizado no RN, o que inclui a chegada do PCC – Primeiro Comando da Capital, uma das facções brasileiras mais poderosas atualmente – no ano de 2002. Em seu movimento expansionista, o PCC adotou uma postura de parceria com os “criminosos” no estado. Ao ganhar confiança de presos, foi “batizando irmãos”, que passaram a fazer parte de seus quadros e que alteraram, definitivamente, as dinâmicas criminais locais. Com a chegada do PCC, o crime começa a se organizar de forma mais coletiva, estruturada e fundamentada em um Estatuto, como, por exemplo, não poder roubar nas periferias ou não tolerar crimes sexuais.
A atuação do PCC no estado começa discreta. Com o passar dos anos, as relações com o crime local vão sendo tensionadas. Em 2012, o assassinato de Berg Neguinho, um membro importante da facção, como descrito na dissertação de mestrado de Natália Firmino do Amarante (2019), marcará um ponto de ruptura importante. Esse assassinato, assim como a imposição de regras para o funcionamento do crime oriundas de São Paulo, levou a uma insatisfação generalizada entre membros do próprio PCC que, em 2013, “rasgaram suas camisas” e deram origem ao Sindicato do Crime. Entre outros coisas, essa dissidência proclama: “quem manda no crime somos nós”. A rivalidade crescente entre as duas facções só aumentará com o correr dos anos e terá seu auge com o Massacre na Prisão Estadual de Alcaçuz. Durante esse incidente, ocorrido em janeiro de 2017, 27 pessoas foram assassinadas, havendo ainda uma lista de desaparecidos inconclusa.
O Massacre durou 10 dias. Durante dez dias o Brasil, através da mídia nacional e internacional, assistiu à guerra entre o PCC e o Sindicato do Crime em Alcaçuz e percebeu como o Estado tentou coibir a fuga dos presos – mas deixou que se matassem lá dentro, impedindo a entrada de água, alimentação e atendimento médico para os feridos. Essa “guerra”, por sua vez, deu origem a novos ciclos de vingança entre as facções e transbordou para as ruas potiguares. No ano de 2017 e 2018, por exemplo, tivemos um aumento exponencial no número de homicídios, o que provocou a morte, inclusive, de muitas mulheres identificadas (de forma equivocada ou não) como membros de uma ou de outra facção. Tivemos também a tomada de bairros por facções rivais que disputavam esses territórios e impediam a livre circulação de pessoas, o que prejudicou moradores locais, submetidos ao fogo cruzado das facções e de agentes de segurança pública.
Como o punitivismo do Estado alimenta o crime organizado
Como de praxe, o estado reagiu. Convocou a Força Nacional e muitas “lideranças” foram presas, havendo apreensão de armas, drogas e recursos financeiros, o que desestabilizou um pouco as dinâmicas criminais locais. A Intervenção em Alcaçuz também foi uma prática adotada e foi a agência que mais tempo permaneceu no RN. Foi responsável pela implementação de um regime disciplinar ainda mais rígido e punitivista e que perdura no tempo desde 2017. E sua existência diz respeito também à nossa omissão como sociedade e de agentes públicos que deveriam monitorar o sistema e fiscalizá-lo com mais eficácia no decorrer do tempo.
Diga-se, de passagem, que desde 2017, ao acompanharmos familiares de pessoas privadas de liberdade, testemunhamos a realização de inúmeras denúncias feitas por presos, egressos e seus familiares. São expressas em cultos, passeatas, palestras e através dos meios oficiais, como idas aos Fóruns, Defensorias, Ouvidorias, Ministério Público, etc..
A falta de acesso a comida não estragada, por exemplo, é pauta constante desses relatos, assim como há uma reclamação recorrente em relação ao acesso restrito à água, remédios e produtos de higiene. Doenças parecem ser o quadro normalizado e não há acesso a médicos minimamente assegurado. Bens de higiene levados pela família também não são entregues, o que impõe aos presos práticas consideradas indignas e não saudáveis, como o compartilhar coletivo de uma mesma lâmina de barbear ou de escovas de dentes. Além disso, são recorrentes as falas de torturas psicológicas (xingamentos; terem que ficar horas em posição de procedimento ou com sede) e físicas (como espancamentos, sufocamentos, sujeição a spray de pimenta, aplicação de castigos coletivos, sujeição a celas extremamente cheias e punições de isolamento por períodos de 30 a 40 dias). Uma queixa frequente é a suspensão da visitas íntimas, praxe adotada na grande maioria das prisões brasileiras, e a proibição de entrada de itens alimentares ofertados pelas famílias.
Sabemos que o Brasil é marcado por graves violações de Direitos Humanos no sistema prisional e em um país como o nosso, em que a justiça se confunde com a ideia de imputação de sofrimento a um outro frequentemente desigual, essas violações são consideradas “naturais” e não geram impacto maior, salvo em momentos de crise ou grande comoção. A sociedade, que equivocadamente se vê distanciada do mundo prisional, não costuma dar atenção a essa questão, a não ser quando os “incêndios” rompem os muros das prisões, como é o caso dos “ataques” recentes no Rio Grande do Norte. Por outro lado, a fome, a superpopulação, o déficit de vagas altíssimo, o excesso de prisões provisórias, o superencarceramento de populações jovens, negras e periféricas não é específico do Rio Grande do Norte. Nesse sentido, qual seria o diferencial do RN em relação a outros estados, por exemplo?
Se o caso do Rio Grande do Norte apresenta semelhanças com o quadro verificado no restante do Brasil, é preciso atentar para suas especificidades. Parece haver, aqui, um quadro ainda mais deteriorado em relação à escuta de denúncias de violações e na condução dos encaminhamentos posteriores necessários para contê-las e monitorá-las de modo efetivo e durável. Nesse sentido, precisamos de monitoramentos externos e duradouros no estado. Aqui também temos uma facção atuante e que já aprendeu a mobilizar o idioma da violência como vetor também de denúncia e/ou escuta obrigatória, ainda que proferida de modo indefensável, mas não controlável a médio e longo prazo.
O contexto do RN revela ainda que, embora não se possa fazer uma correlação direta entre pobreza e criminalidade (e de fato não estamos diante de um fator determinante) e que não nos caiba romantizar as facções criminosas, é evidente que a miséria prisional, assim como a ausência de um estado de bem-estar social em detrimento de um punitivista, alimenta o crime organizado. E alimenta a reprodução da violência, dentro e fora das prisões, e que é acionada tanto por “criminosos” como por agentes da ordem quando não zelam pela aplicação da LEP (Lei de Execução Penal).
Por outro lado, acreditamos que olhar para o contexto do RN, podemos refletir sobre essas questões de modo mais denso. Ao olharmos mais detidamente os eventos recentes, fica evidente como repetimos as mesmas soluções para conter as dinâmicas criminais e elas não são eficazes a médio e longo prazo. Fica evidente a máxima de que, se nossas prisões são “máquinas de moer gente”, por outro, são o fermento ideal para o crescimento e fortalecimento das facções criminosas, que, sim, se alimentam da miséria prisional e de sua tragédia cotidiana. Vemos também, infelizmente, como governos mais ou menos humanistas, acionam igualmente o punitivismo e “a guerra” como estratégias centrais, ao invés, de se concentrar, também, na apuração de denúncias, no fortalecimento de órgãos de monitoramento para coibi-las e implementação de projetos de reinserção social e profissionalização nas prisões.
Nessa crise atual, felizmente, parece haver uma busca por uma reflexão maior sobre esse contexto e isso está representado, por exemplo, nesse espaço de fala. Parece que a mensagem de que é preciso ir além das soluções tradicionais (o punitivismo) começa a ser ouvida. Recentemente, inclusive, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), fez uma série de recomendações para distensionar o sistema a curto prazo. Além do indulto para presos que não estão associados a facções e que cometeram crimes menores e sem uso da violência (e que são facilmente cooptados pelas facções criminosas nas prisões), sugere a criação de um Mecanismo Estadual de Combate à tortura, com maior poder de atuação e monitoramento. Sugere, ainda, a associação a uma rede maior de monitoramento e que caminhe de braços dados com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania de uma forma mais eficaz, duradoura, de modo que não seja acionada apenas em momentos de crise. Esperamos, de fato, que essas medidas se enraízem, ganhem força e possam romper esses velhos e novos ciclos. Caso contrário, viveremos à espera de uma nova onda de “ataques”.
Foto de topo: Força Nacional atua no Rio Grande do Norte. Foto: Tom Costa /MJSP
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