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Se correr você toma um tiro, se ficar perde a liberdade

"Quem é interno em uma unidade do socioeducativo, não precisa de motivo para apanhar, precisa de motivo para resistir e continuar vivo", conta adolescente

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Eu sou o Hogo.
 
Morador de Manguinhos e egresso do socioeducativo, vou falar um pouco de minha vida no cárcere. Enquanto lá estava ,vivi coisas que não desejo para ninguém. Somos colocados em condições sub-humanas, de uma perversidade que só se viu em campos de concentração em uma época em que a Alemanha assassinou os judeus.

>>Impedir visitas às prisões agrava violações de direitos durante a pandemia
 

Fico pensando: se no tempo que passei lá já era muito difícil, imagino agora, que estamos em uma pandemia. Penso na minha mãe, em tudo o que ela precisou passar para estar ao meu lado. Me pego pensando em todas as mães e filhos, que estão nesse momento vivendo aquele lugar. Não tínhamos comida e nem atendimento de saúde.
 
Apesar de termos alguns profissionais que faziam de tudo por nós, como por exemplo, os professores. Do outro lado tinha os agentes que nos torturavam frequentemente e os motivos das torturas eram diversos. Seja porque o time perdeu, porque o pagamento atrasou ou até mesmo porque estava chovendo ou estava calor.

>>Documento discute como cidades podem criar políticas penais melhores
 

Para quem é interno em uma unidade do socioeducativo, não precisa de motivo para apanhar, precisa de motivo para resistir e continuar vivo. O meu motivo: “minha mãe”, ser um orgulho para ela, mudar minha trajetória de vida e mostrar que não sou o monstro que o Estado pintou e usou como tática de vingança e ameaça para os demais adolescentes de Manguinhos.
 
Vivo em uma realidade em que se correr você toma um tiro, se ficar perde a liberdade. Somos forjados o tempo inteiro por pessoas que deveriam nos proteger, mas como na favela tudo é do contra, com os policiais não seria diferente.
 
Fui usado para causar na mídia, usado para dar resposta a uma sociedade que está pouco se importando com o que acontece aqui dentro da favela, mas ter um adolescente preto estampado nas capas dos maiores jornais sensacionalistas dá um gosto de dever cumprido para sociedade, colocando assim o Estado como o salvador das coisas e dos fatos que de um modo geral ele mesmo criou. Como se a partir da minha apreensão, os problemas do Estado estivessem todos resolvidos.
 
Às vezes acordo de madrugada com a sensação de que estou lá, o terror é tão nítido que consigo sentir o cheiro dos ratos e da comida que sempre estava estragada. Consigo ouvir os passos dos agentes vindo em minha direção. Já sabia que aquela madrugada seria de tortura e de terror. Lembro-me de algumas vezes que fui acordado com tapas na cara com a alegação que estava na hora da revista. Fechando os olhos, consigo sentir minha cara quente e o barulho do estalar do tapa.
 
Em alguma rede social, fico sabendo que enquanto durar a pandemia as visitas e audiências serão por vídeo conferência. Minha cabeça dói em pensar nisso, presencialmente já éramos torturados e obrigados a dar relatos que não faziam parte de nossa história, imagina pela tela de computador e uma câmera qualquer. Imagino quantos jovens estão sendo espancados e obrigados a relatar fatos e coisas que não viveram. É dessa forma que vivemos e somos tratados enquanto jovem, preto e morador de favela.
 
Para piorar o que parece não ter como, saímos da secretaria de educação, para a secretaria de segurança pública e ainda querem diminuir a maioridade penal. Estamos vivendo tantos retrocessos que imagino um tempo em que perderemos o direito de nascer, porque o direito de viver, esse já não temos há um bom tempo.
 
Através de um familiar de um amigo que fiz lá dentro, fico sabendo que muitos estão contaminados pelo Covid-19 e que como sempre o Estado esconde as condições do sistema. Se na época o sistema de saúde nas unidades não funcionava, imagina agora que estamos vivendo algo inédito? Uma mãe me relatou que seu filho estava muito mal, pois tem tuberculose que adquiriu lá dentro, sendo ele grupo de risco, por que não foi liberado para cumprir de L.A?
 
Por que somos colocados como inimigos se a lógica é ressocializar?
Por que somos espancados a todo o tempo?
Porque somos acordados com jatos de água em madrugadas frias e essa mesma água é negada em dias quentes?
Por que os agentes se acham no direito de nos tratar como seres sub-humanos com a lógica do abate?
Por que o Estado nunca é responsabilizado pela forma perversa que trata os privados de liberdade?
Por que com tantos processos nas Cortes Interamericanas de Direitos Humanos, o Estado Brasileiro segue com o genocídio e encarceramento, com certeza da impunidade?
Por que preto, pobre e favelado, *Eu*, sempre vou ser o que vai ser tombado e encarcerado?
Por que?
Por que?
Por que?
Dessa forma o Estado segue como seu genocídio, seja encarcerando, seja sendo omisso. E esse genocídio não se limita ao privado de liberdade, também massacra e extermina toda uma família. Com uma lógica perversa de negação de direitos e omissão de deveres. Sai governo, entra governo e a lógica não muda.
 
É preto, vai morrer
É pobre, vai morrer
É favelado, vai morrer
 
Seja nas cadeias e unidades do socioeducativo, seja nos becos e vielas das favelas e periferias…

Publicado originalmente no site Covid nas prisões

Foto de topo: Cidicleiton da Silva / Gajop

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