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Seca e fumaça em Manaus alimentam sensação de fim do mundo

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Jessica Valois e Raquel Cardoso, do Coletivo Ponta de Lança *

Na região leste de Manaus, existe um bairro chamado Puraquequara. Trata-se de um bairro distante do centro, que liga a cidade aos pequenos municípios do entorno. Sempre que precisam acessar serviços públicos mais complexos, os moradores das comunidades ribeirinhas vão de barco até o Puraquequara e, dali, seguem para o centro. 

Já há algum tempo, nós, do Coletivo Ponta de Lança, desenvolvemos trabalhos nessas comunidades próximas de Manaus. Surgida em 2018, nossa organização trabalha com comunicação popular, formação política, discussões sobre raça e cultura. Atuamos sempre nas periferias da Amazônia, lugares que conhecemos bem porque foi onde nascemos e nos criamos. Por aqui, a periferia é horizontal e ribeirinha. Formada às margens dos rios, tem características de zona rural. Nelas, comumente faltam serviços básicos de assistência à saúde e educação. 

Nos últimos meses,  projetos que conduzimos nessas comunidades tiveram de parar. A estiagem severa que atingiu toda a região Norte do Brasil fez cair os níveis dos rios. Sem poder navegar, o acesso dos ribeirinhos ao Puraquequara – e nosso a eles –  foi inviabilizado. Hoje, as notícias das comunidades nos chegam por whatsapp e pelas redes sociais. Isolada pela seca,  essa população  viu escassear itens básicos. Como o transporte é difícil, tudo por lá ficou mais caro. Falta comida e água potável para beber ou tomar banho. 

Aqui, é importante fazer um adendo: as populações da Amazônia estão acostumadas a enfrentar períodos de seca. Nas franjas de Manaus, as comunidades periféricas desenvolveram, ao longo de gerações, estratégias para resistir a tempos de estiagem. Nas comunidades próximas ao Puraquequara, por exemplo, os habitantes constroem cacimbas. Tipo de poço artesiano, a cacimba penetra o chão até atingir o lençol freático. Nos meses de pouca chuva, são elas que abastecem as casas. 

Em 2023, no entanto, até as cacimbas falharam. Os vídeos que recebemos mostram poços cheios de lama, sem água suficiente para beber. 

A seca extrema dos últimos meses despertou em nós duas sensações. Primeiro, sem exageros, o que nos invade é uma sensação de apocalipse. Manaus foi construída às margens do rio Negro. Toda pessoa que mora na cidade, mesmo que não viva em comunidades ribeirinhas, se acostuma a ver o rio Negro como uma figura permanente. Profundo, caudaloso, nos últimos meses ele minguou.

Certa vez, vimos uma entrevista do ativista e escritor indígena Ailton Krenak. Nascido em Minas Gerais, Krenak comentava como o mar de lama liberado pelo rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, matou o rio Doce. Maltratado pelos homens, o rio Doce se retraiu.

O mesmo aconteceu com o rio Negro. E a culpa é dos homens. A seca extrema de 2023 foi agravada pelo fenômeno do aquecimento global, provocado pelos humanos. Conforme o nível da água foi baixando, todo o lixo despejado pela cidade no leito do rio Negro voltou à tona. Ficou evidente que, há anos, o rio sofre.

A outra sensação despertada é a de invisibilidade. Nos parece que, para o restante do país, o norte existe como uma vasta extensão de floresta e fauna. Um lugar sem gente, cujos problemas podem ficar em segundo plano. 

Essa invisibilidade já é nossa velha conhecida. Sentimos o mesmo durante a pandemia de covid-19, quando faltou oxigênio nos hospitais de Manaus. Naquela época, o Ponta de Lança produziu um documentário que registrou a pandemia a partir da perspectiva das comunidades periféricas. Queríamos mostrar o que acontecia nesses espaços, e estimular seu protagonismo. Nessa nova crise, a invisibilidade é, novamente, inimiga. Percebemos um quadro de indiferença semelhante ao verificado durante a pandemia. 

Por ora, entendemos que o poder público fez pouco e foi lento. A fome atingiu as comunidades, e os coletivos populares é que se mobilizaram para angariar doações, para comprar cestas básicas e tentar prestar algum auxílio às comunidades mais afetadas. Basicamente, assumimos um papel que cabia ao Estado. 

A inação do Estado, inclusive, não se resume às ações de combate à seca. Há semanas, Manaus acorda coberta por uma camada de fumaça, resultado de incêndios florestais. Pouco se fez para identificar os culpados pelas queimadas. 

É preciso ação imediata. Conforme a crise climática avança, eventos extremos  – como secas severas – se tornarão mais frequentes. As populações mais atingidas serão, justamente, as populações periféricas, negras, indígenas, ribeirinhas. Se não puderem viver em seus territórios, porque faltará água e serviços básicos, essas pessoas virão para os centros urbanos. O avanço da crise climática deve agravar crises socioeconômicas que existem hoje. É preciso implementar formas de produzir e distribuir riquezas que agridam menos o meio ambiente. Para evitar o fim do mundo – cujos ecos já experimentamos hoje – precisamos agir já. 

*em depoimento a Rafael Ciscati

 

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