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Seca no Amazonas isola comunidades indígenas e leva fome a aldeias do rio Juruá

Liderança do povo Madiha Kulina, Marlene Kulina conta como crise ambiental agravou problemas sociais enfrentados pelos povos da região

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 Marlene Kulina, da Opiju* 

Semanas atrás, recebi um áudio pelo whatsapp que me deixou preocupada. Quem me procurava era um companheiro do povo Katawixi.  “Será que você poderia nos ajudar a conseguir cestas básicas para as aldeias aqui do nosso município?”, perguntava o rapaz, que vive no município do Juruá, no sudoeste do Amazonas. “O pessoal está passando fome, porque a estiagem está demais. E até agora, não tivemos ajuda nenhuma. Precisamos de cestas básicas para as famílias”.

Com dor, precisei dizer que não tinha como ajudá-lo. Pelo menos não naquele momento. Há meses, recebo apelos parecidos, vindos de parentes que vivem em diferentes pontos da calha do rio Juruá. 

Eles me procuram porque, hoje, ocupo a posição de coordenadora-articuladora da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opiju). O grupo foi criado em 2022, por iniciativa dos indígenas da região, durante um evento realizado pela Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi) e pelo Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas (Foreeia). Reúne representantes indígenas de seis dos sete municípios que compõem a bacia desse rio amazônico. 

No total, por meio de seus representantes, a Opiju alcança uma população indígena que ultrapassa a marca de 9 mil pessoas. Isso, de acordo com as últimas contagens: ainda estamos esperando os números atualizados do Censo de 2022. 

Desde agosto, todas essas pessoas são afetadas pela estiagem severa que atinge a região Norte do Brasil. O nível dos rios e igarapés baixou, isolando comunidades que, hoje, passam fome. 

Sou indígena Madiha Kulina, e moro na cidade de Eirunepé, um pequeno município às margens do rio Juruá. Nos arredores do município, vivem duas etnias – os Madiha Kulina e os Kanamari. A maior parte dessa população mora nas aldeias, mas vem à cidade para fazer trabalhos, receber benefícios sociais (como o Bolsa Família) e para comprar comida. Adquirem, aqui, itens que não podem ser produzidos nas aldeias. Como açúcar, café e gasolina. 

Durante a seca, não é possível navegar pelos igarapés. Parte do caminho é feito a pé, fugindo de cobras e arraias (foto: Marele Kulina)

O caminho que leva das aldeias ao centro do município é, tradicionalmente, feito de canoa. Remando, os indígenas descem os igarapés que levam até Eirunepé. O mesmo acontece nos demais municípios da calha do Juruá. Na época das cheias, a viagem pode tomar até um dia inteiro. Durante a seca, o tempo de viagem aumenta, chega a dobrar. 

Estamos acostumados a meses de seca, quando o nível do rio e dos igarapés baixa. Todos os anos, isso acontece. Em 2023, secou mais do que o normal.

Mais severa que as anteriores, a estiagem de 2023 impossibilitou viagens. Bancos de areia surgiram nos rios, onde os barcos encalham. Os indígenas plantam, mas nem todas as culturas estão em época de colheita. Quem desce os igarapés para comprar mantimentos precisa fazer parte do trajeto a pé, arrastando a canoa pelo meio da mata. É cansativo e perigoso. Quem anda pelo leito do rio corre o risco de ser picado por arraias. Uma viagem que duraria um dia pode levar quatro, cinco. 

A seca também dificulta cuidados em saúde. Muitos parentes doentes morreram a caminho da cidade. Nas aldeias, não há energia elétrica,sinal de celular nem internet.  Como também não há radiofonia, quem vive nas comunidades não consegue entrar em contato com a Casa de Saúde Indígena (Casai) para pedir ajuda em caso de doença. No desespero, tentam trazer a pessoa doente de barco, remando. Muitas não resistem e morrem pelo caminho. 

Desde que a seca começou, procuro instituições que possam nos ajudar com doações de cestas básicas, de mantimentos que ajudem as famílias a enfrentar o momento difícil.  Sabemos que o governo federal destinou verbas aos municípios do Amazonas, para comprar mantimentos e ajudar populações em vulnerabilidade. Por ora, a ajuda ainda não chegou na ponta.

Esse quadro de negligência é antigo. Já há décadas, as populações indígenas da nossa região são ignoradas. Foi por isso, para fortalecer nossas vozes, que criamos a Opiju.

Nasci em uma aldeia do povo Madiha Kulina, onde vivi até os 5 anos de idade. Ainda na infância, em função de uma tragédia familiar, fomos obrigados a vir para a cidade de Eirunepé. Morei um tempo em Manaus até que, em 2017, retornei à cidade. Aqui, observei como a população indígena do município era tratada com descaso e violência. 

Na cidade, os patrões tomam os cartões de benefício sociais – como o Bolsa Família, INSS e aposentadoria – emitidos em nome dos indígenas. Argumentam que os indígenas têm dividas, e tomam os cartões para saldá-las. Os Kulina vêm ao município em busca de benefícios sociais mas, como não têm os cartões, ficam sem receber. Acabam se estabelecendo em barracas de lona às margens do rio. Sem alimento, desesperados, bebem e brigam. Muitos acabam assassinados, ou se suicidam. 

 Sem acesso a benefícios sociais, os Madiha Kulina acampam em barracas de lona, às margens do Juruá (Foto: Marlene Kulina)

Se posicionar contra essa realidade de desmandos é perigoso. O preconceito contra indígenas nas cidades é grande. Quem questiona conquista inimigos. ‘"Só a Marlene reclama. Ela é o problema", é o que escuto sempre. Não é verdade: se os demais indígenas não reclamam, não é porque estejam satisfeitos. O que acontece é que lhes falta informação, e a maioria se sente intimidada. Os poucos que reclamam são reprimidos. Mesmo eu: depois de uma oitiva de indígenas desta calha com representantes do Ministério dos Povos Indígenas e do Ministério Público Federal, organizada pela Opiju, fui exonerada do cargo que ocupava na prefeitura.

A Opiju foi criada para lutar por direitos. Para cobrar melhorias de educação, saúde, pela proteção do território e para cobrar que políticas públicas adequadas sejam implementadas. A intenção é criar condições para que os parentes não precisem sair de suas comunidades para acessar direitos. Desde sua criação, promoveu ações de formação política, e rodas de conversa voltadas ao combate ao suicídio. Mas precisamos avançar: ainda faltam escolas para a população indígena, os professores não recebem formação adequada. 

Hoje, se as pessoas me procuram, é porque confiam em mim. E é doloroso não poder ajudá-las. Quando estava em Manaus, semanas atrás, fui à Fundação Estadual do Índio (FEI). Pedi que enviassem cestas básicas para a comunidade. Mas, me parece, vão deixar o Juruá por último. 

Essa invisibilidade do Juruá precisa mudar. 

Precisa mudar, também, a forma como os não-indígenas se relacionam com o meio ambiente. Secas como a de 2023 tendem a se tornar mais frequentes, conforme as temperaturas do planeta sobem.É preciso ter consciência disso. E agir. 

Nesse mundo capitalista, as pessoas ganham dinheiro às custas da natureza, e não tem consciência de que, amanhã, seus filhos vão sofrer. Pensam somente no aqui e no agora. As pessoas que ganham, hoje, esquecem que têm filhos, que terão netos, e que eles vão precisar de água, de alimentos. Com tudo o que está acontecendo, esses filhos e netos não vão usufruir, lá na frente, de tudo o que a gente usufruiu. É triste. 

Estive em Manaus semanas atrás. Todos os dias, a cidade amanheceu coberta pela fumaça de queimadas. Será que os governantes não fazem nada? Não conseguem identificar quem incendeia mata, para aplicar multas pesadas?

Moro numa cidade, mas visito meu povo nas aldeias. Eles – os indígenas – fazem sua parte. Plantam, não desmatam mais que o necessário, não queimam. E o restante da sociedade? Faz o que?

*Em depoimento a Rafael Ciscati
 

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