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Povos indígenas

O direito dos povos indígenas aos seus territórios é assegurado pela Constituição de 1988. Foi resultado de anos de mobilização dos indígenas, que cobravam acesso à cidadania plena

Terras indígenas do Brasil: quantas são e como são demarcadas

Povos indígenas

Terras indígenas do Brasil: quantas são e como são demarcadas

O direito dos povos indígenas aos seus territórios é assegurado pela Constituição de 1988. Foi resultado de anos de mobilização dos indígenas, que cobravam acesso à cidadania plena

Escrito em 03 de Abril 2023 por
Rafael Ciscati
Maria Edhuarda Gonzaga *

Há mais de 800 mil pessoas autodeclaradas indígenas vivendo no Brasil. Os dados são do Censo Demográfico de 2010, e devem ser atualizados pela pesquisa de 2022.  São representantes de, pelo menos, 266 povos. Grupos que falam idiomas diferentes, têm hábitos e tradições distintas. Em toda a sua diversidade, esses povos compartilham uma necessidade: para que suas culturas sobrevivam, precisam ter acesso às terras que ocupam há gerações.

O  direito dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais foi reconhecido pela Constituição Federal de 1988. No seu artigo 231, a Carta define terras tradicionalmente indígenas como aquelas "por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seu usos, costumes e tradições". O texto também diz que é responsabilidade do Estado brasileiro proteger esses territórios, demarcar seus limites e garantir que o usufruto dessas terras seja exclusivo dos indígenas. Nesse ponto, a lei colide com a realidade.

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Desde que a Constituição Federal foi promulgada, há mais de 30 anos, a demarcação de terras indígenas no Brasil avançou a passos lentos. A Carta previa que todas as demarcações fossem concluídas até 1993. Hoje, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) contabiliza 764 áreas em diferentes estágios do processo demarcatório: 448 já foram homologadas ou regularizadas (chegaram às duas últimas etapas do processo). Juntas, elas representam 13,75% do território brasileiro. A maioria está concentrada na Amazônia Legal. Em 2021, pelo menos 201 delas sofreram com casos de invasões e violência, segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Hoje, as terras indígenas brasileiras são disputadas por madeireiros ilegais, garimpeiros e pelo agronegócio. Um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional discute abri-las à exploração mineral e, no Supremo Tribunal Federal (STF), discute-se o estabelecimento de um marco temporal, segundo o qual só teriam direito aos territórios tradicionais aqueles grupos indígenas  que viviam nessas áreas no momento em que a Constituição de 1988 foi promulgada. Em meio ao avanço da crise climática, as terras indígenas são também apontadas como importantes instrumentos para proteção do meio ambiente. Para os povos que as ocupam, essas áreas são "nossa origem, nossa história, nossa cultura e modo de vida", segundo conta o líder indígena Wagner Katami, do povo Kraho-Kanela.

Mas, como funciona o processo de demarcação de uma terra indígena? E como os povos indígenas conquistaram o direito a esses territórios? Entenda essa história em cinco pontos. 

Quais eram os direitos indígenas antes de 1988?

Manifestação contra o marco temporal na terra indígena Rio Pindaré, Maranhão (crédito: Genilson Guajajara)

Num texto publicado em 2018, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha conta que o direito dos povos indígenas às suas terras é um assunto recorrente na legislação brasileira desde o período colonial.  A Lei de Terras de 1850, por exemplo — já no Brasil Império — determinava que as terras públicas ocupadas por indígenas deveriam ser reservadas para seus aldeamentos. O assunto também figurou nas Constituições promulgadas no período republicano.  "[Esse direito] foi inscrito em todas as Constituições republicanas desde a de 1934", escreve a atropóloga. O direito constava na lei, mas não era, necessariamente, respeitado.

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Até 1988, os povos indígenas brasileiros não gozavam de cidadania plena. Não votavam nem podiam se candidatar a cargos públicos. Carneiro da Cunha conta que os indígenas foram incluídos no Código Civil de 1916 na condição de "relativamente capazes": eram comparados às mulheres casadas e aos menores de idade que tivessem entre 16 e 21 anos. Isso significava que eles deveriam ser "tutelados": enquanto as mulheres casadas eram responsabilidade de seus maridos, os indígenas eram responsabilidade da União. Na época, imperava o entendimento  de que o indígena era uma categoria transitória, destinada a  desaparecer e ser assimilada pela sociedade nacional.  Essa concepção levou o Estado brasileiro a, em algumas regiões do país, confiná-los em "reservas": faixas de terras estreitas, cujo tamanho era insuficiente para garantir a sobrevivência cultural e material desses povos.

O quadro se agravou a partir da ditadura militar. Na década de 1970, conta Carneiro da Cunha, os generais se apossaram de vez da política indigenista. O resultado foi especialmente tenebroso para os indígenas da Amazônia: vistos como um entrave ao desenvolvimento do país, os povos da Amazônia eram também retratados como um risco à proteção das fronteiras. No afã de povoar a região, o governo militar promoveu grandes obras de infraestrutura que cortaram a floresta, e levaram doenças e invasores às aldeias.

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No final daquela década, o ministro do interior, Rangel Reis, propôs que o governo aprovasse um "decreto de emancipação". A ideia era a de que os indígenas "aculturados" — que já não observassem suas tradições — deixassem a condição de tutelados e passassem a gozar de direitos políticos. Em contrapartida, esses indígenas perderiam o direito às suas terras tradicionais. "Em suma, emancipar índios era uma forma disfarçada de liberar as terras que ocupavam", afirma Carneiro da Cunha.

A reação à proposta do governo foi imediata. Organizações da sociedade civil, acadêmicos e políticos se manifestaram contrários à medida. "Em 1978, a demanda 'pela demarcação das terras indígenas' tinha se tornado tão popular que um adesivo com esses dizeres era frequente nos carros de várias cidades", lembra a antropóloga. Esse conjunto de organizações favoráveis aos direitos indígenas ganharia um reforço importante em 1980, quando foi fundada a União Nacional dos Índios (Uni). Surgida em reação ao decreto de emancipação, a Uni reunia indígenas de todo o país.

Nos anos seguintes, o Brasil avançaria em direção à redemocratização. Diversos grupos se organizaram para cobrar que nova Constituição Federal contemplasse direitos de populações específicas. E a Uni desempenhou papel importante nas discussões da Assembleia Constituinte. Por esses tempos, ganhou destaque o presidente da organização, uma liderança jovem de nome Ailton Krenak. No dia 04 de setembro de 1987, Krenak proferiu um discurso que marcou época. Subiu ao púlpito da Assembleia Nacional Constituinte vestindo um terno branco, cabelos pesados compridos até os ombros. "Os senhores não poderão ficar alheios a mais essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena", disse aos deputados, enquanto cobria o rosto com pasta de jenipapo. Negra, espessa, a pasta é usada pelos Krenak em sinal de luto. "O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos 8 milhões de quilômetros quadrados que compõem o Brasil".



As palavras de Krenak correram o mundo. E a pressão protagonizada pela Uni colaborou para que a nova Carta destinasse um capítulo aos direitos indígenas. 


Terras indígenas - o que diz a Constituição?


A Constituição de 1988 fixou que os povos indígenas detêm “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, e que cabe ao Estado demarcá-las. Após a demarcação, esses territórios continuam sendo posse da União. Mas o usufruto — o direito de uso — é exclusivo dessas populações tradicionais. Eles não podem ser removidos de suas terras, a não ser nos casos em que sua permanência implique em riscos à vida. 

Essas garantias aparecem no artigo 231 da Carta. Alguns juristas afirmam que, ao reconhecer que indígenas detêm “direitos originários sobre as terras”, a Carta abre caminho para o entendimento de que esses povos podem requisitar a demarcação de territórios onde viveram no passado, e de onde foram expulsos. No meio jurídico, essa interpretação ficou conhecida como “tese do indigenato”.

A ela se opõe a tese do “marco temporal”. De acordo com essa segunda interpretação, os indígenas só têm direito aos territórios que ocupavam no dia em que a Constituição foi promulgada, em 1988. O tema é debatido no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso Nacional. Para saber mais detalhes leia: O que é o marco temporal em terras indígenas. 


Como funciona a demarcação de terras indígenas?


O processo de demarcação de terras indígenas segue um roteiro que pode ser dividido em seis atos:

1 - Identificação da terra indígena. 

O processo demarcatório se inicia com um estudo de "identificação e delimitação" territorial, realizado por um antropólogo nomeado pela Funai. Após o prazo de reconhecimento, uma equipe técnica produz um relatório com base em estudos complementares sobre a etnologia do local. A análise se baseia na natureza, na cartografia e na história sociológica e jurídica da extensão que se deseja demarcar. Em complemento a isso, é feito também um levantamento fundiário sobre as proporções da terra indígena, que irão justificar o tamanho da terra demarcada. 


2 - Divulgação no Diário Oficial

O relatório é aprovado pelo presidente da Funai – atualmente, Joênia Wapichana – e, em até quinze dias, é divulgado em alguns canais: nos Diários Oficiais (da União e do estado em que o território estudado se localiza) e na sede da prefeitura local. Essa publicação fica aberta a manifestações por noventa dias, a fim de abrir espaço para qualquer interessado que queira contestar o processo, exigir indenização ou apontar tanto vícios quanto ilegalidades no relatório. 

A Funai tem mais dois meses para reunir as contestações depois da finalização desse período de objeções e enviar para o Ministério da Justiça. 
 


3- Definição dos limites

O processo, assim, é encaminhado para o Ministro da Justiça. A pasta tem um prazo de 30 dias para definir a extensão do território demarcado, requisitar diligências da Funai para serem realizadas em mais noventa dias ou até reprovar a demarcação da terra. 


4- Demarcação física e reassentamento de não-indígenas.

Passado o momento de "declaração de limites", a Funai realiza, mediante aprovação do Ministério da Justiça, a demarcação física do local determinado. Enquanto isso, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) lidera o processo de reassentamento dos não-indígenas que ocupam o território. 



5 - Homologação pela presidência da República

A demarcação é submetida ao Presidente da República, o que finaliza o processo administrativo. Com a sua assinatura, o território é homologado por decreto. A Funai é encarregada de registrar, em até um mês, as terras indígenas na Secretaria de Patrimônio da União e interditar as áreas para proteger os povos tradicionais mais isolados.

A retirada de ocupantes não-indígenas da terra demarcada ocorre após a finalização do procedimento. São, ainda, indenizadas as pessoas que porventura tenham propriedades sobrepostas à da terra homologada. A União não compra os terrenos privados:  apenas restitui aqueles que fizeram benfeitorias no território demarcado, como construções e estruturas.


6- Registro da terra indígena

Por fim, a terra indígena homologada é registrada no cartório de imóveis da comarca correspondente e na Secretaria de Patrimônio da União (SPU).


Atualmente, há 764 terras indígenas registradas na Funai, que estão em diferentes fases do processo demarcatório. Dentre elas, 448 são homologadas ou reservadas, ou seja, estão delimitadas e protegidas pelo governo federal para usufruto da(s) aldeia(s). O estado onde os povos originários estão em maior quantidade (55%) é o Amazonas e a região norte do Brasil concentra a maioria dos indígenas, segundo o último censo realizado pelo IBGE, em 2010. 


E qual foi a primeira terra indígena demarcada no país?

 Em janeiro de 2020, lideeranças de diversas etnias participaram do Encontro Mebengokrê, no Parque Indígena do Xingu (Foto: Mídia Ninja)

A primeira terra indígena demarcada, ainda antes da promulgação da Constituição de 1988,  foi o Parque Nacional do Xingu, atualmente chamada de Parque Indígena do Xingu (PIX). Localizado no nordeste do Mato Grosso, o território abriga 16 etnias. Segundo dados de 2023 do Instituto Socioambiental (ISA), vivem ali mais de seis mil indígenas que falam diferentes idiomas.  

Os debates acerca do projeto demarcatório se iniciaram em 1952. A regulamentação da área e a subsequente assinatura do decreto pelo então presidente Jânio Quadros ocorreu nove anos depois, em 1961. Mas foi só em 1978 que a área a ser demarcada foi estabelecida. Ela corresponde à mesma área usufruída pelos indígenas hoje. O processo demarcatório foi longo especialmente por causa da resistência imposta pelo estado do Mato Grosso.

A oposição do governo mato grossense vinha da concepção de que a criação do parque, além de acarretar em uma grande perda de terras, era uma decisão que não cabia ao governo federal, uma vez que elas eram de uso estadual e ao estado pertenciam. Em consequência disso, a área demarcada ao final do processo correspondia a um quarto do território previsto no projeto inicial. 

Em 23 de abril de 1978, a Folha de São Paulo publicou uma reportagem sobre o indígena Mairauê, da etnia Kaiabi, que vivia no Parque do Xingu. Nela, Mairauê relatava as invasões de seringueiros, garimpeiros e fazendas de gado, enfrentadas mesmo após o processo demarcatório. Isso fez com que diversas etnias saíssem dos seus locais de origem, uma vez que a terra estava “nas mãos dos brancos”. 

Apesar disso, Mairauê se mostrou otimista com o apoio direcionado da Funai e a prosperidade de sua aldeia. “Dentro do Parque estamos com uma melhor sorte do que se estivéssemos fora. A nossa tribo hoje tem umas 280 pessoas e está havendo um nascimento cada vez maior de índios em todo o Parque”. 


Que presidente demarcou menos terras indígenas?

Nos últimos 30 anos, a demarcação de terras indígenas no Brasil avançou em velocidade variada, a depender do governo. Isso até 2016. A partir daquele ano, o primeiro do governo Michel Temer, nenhuma terra indígena foi demarcada no país. Temer chegou a homologar a demarcação da Terra Indígea Baía do Guató, em Mato Grosso. Mas a homologação foi suspensa pela Justiça com base na tese do Marco Temporal. 

O desempenho de Temer foi repetido por Jair Bolsonaro. Era uma atuação já esperada pelas organizações indigenistas: mesmo antes de assumir a presidência, Bolsonaro declarara que não demarcaria nem um centímetro de terra indígena. Durante sua gestão, o governo federal também publicou um projeto de lei, ainda em tramitação, que pretendia abrir esses territórios à exploração mineral por empresas privadas. Organizações do terceiro setor chegaram a apelidar a postura do então governo de “política anti-indígena”. No período, dispararam os casos de violência contra povos originários. Aumentaram também os casos de invasões e de garimpo ilegal nesses territórios. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


Mesmo antes disso, o processo de demarcação de terras seguia moroso. Durante seu primeiro mandato, Dilma Rousseff homologou 11 demarcações: o menor número registrado até então. Os dados do gráfico foram compilados pelo Instituto Socioambiental. 


Durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em março deste ano, a ministra Sônia Guajajara, do recém-criado Ministério dos Povos Originários, declarou que a retomada das demarcações será uma das prioridades do novo governo.  "Estamos saindo de quatro anos onde a paralisação da demarcação das terras indígenas foi uma política pública e agora precisamos destravar esses processos”, afirmou. 

A ministra conta que foi realizado um levantamento durante o período de transição para o governo Lula para verificar territórios indígenas com processos demarcatórios estagnados. Quatorze foram identificados. Alguns já têm os estudos realizados e portarias declaratórias assinadas, apenas aguardam a homologação. Outros esperam a conclusão do estudo da Funai para terem suas portarias declaratórias assinadas. 

Sônia Guajajara explica que o projeto de "destravar" esses 14 processos parados no Ministério da Justiça vai acontecer no primeiro ano de governo de Lula, e alguns terão prosseguimento logo nos seus cem dias iniciais. Segundo a ministra, o plano anexado ao levantamento já foi apresentado ao atual presidente na intenção de afirmar a necessidade de avançar com a pauta. “A demarcação de terras indígenas no Brasil é crucial, é um passivo do estado brasileiro para com os povos indígenas”, afirmou. 


Para saber mais

Alguns links e textos com mais informações sobre o assunto:

-Índios na constituição, de Manuela Carneiro da Cunha

-Líder indígena acredita no poder da Constituição para manter proteção a terras demacardas - matéria conta como foi a atuação de Ailton Krenak duranta a Constituinte.

-O site Povos Indígenas do Brasil, do Instituto Socioambiental

 

 

*Estagiária, sob supervisão de Rafael Ciscati.

 

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