“Todo Trem da SuperVia Tem um Pouco de Navio Negreiro*”
O racismo também está impregnado nas políticas de mobilidade envolvendo transporte público. Que impactos isso causa na população preta, pobre e periférica da Baixada Fluminense?
Fabio Leon
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O racismo possui várias variáveis, está presente em praticamente todos os campos do conhecimento e da sociedade. Tratar o racismo de mobilidade é impossível apenas do ponto de vista racial. É necessário traçar um breve histórico sobre uma política pública que afeta a vida de milhares de pessoas diariamente, especialmente as compreendidas nos 13 municípios da Baixada Fluminense, há décadas convivendo com uma malha ferroviária que tenta, de forma ineficaz, trazer “modernidade” a esse conjunto de territórios. Erros, (d)efeitos, demagogias e até violações de direitos fazem parte da rotina de mais de 3 milhões de pessoas, a sua grande maioria pretas e pretos, pobres e periféricos. Optamos em narrar as desventuras por quem usa o ramal mais extenso da concessionária SuperVia: a linha Central do Brasil-Japeri.
Falar da Baixada Fluminense do ponto de vista dos trens, é retornar à infância do desenvolvimento econômico do país. Durante toda a primeira metade do século XX, o surgimento da malha ferroviária foi o berçário de dezenas de estações das quais foram nascendo povoados, aldeias e cidades. Municípios como Nova Iguaçu, Duque de Caxias e Itaguaí, por exemplo, não existiriam se não fossem as estradas de ferro. A partir da grande revolução urbana que começou a ocorrer por volta da década de 1950, quando iniciou-se um movimento irreversível do campo para a cidade, essas cidades próximas dos grandes centros aceleraram seu crescimento. Surgem as “cidades-dormitório”, consequência da falta de empregos locais e por consequência forte dependência da capital.
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“Em algum momento, os trens que ligavam essas cidades passaram a ser chamados de trens de subúrbio e seus passageiros passaram a ser as massas de trabalhadores deslocando-se diariamente de casa para o trabalho e vice-versa em viagens cada vez mais distantes e mais demoradas”, escreve José Cássio Ignarra em sua dissertação de mestrado intitulada “O processo de descentralização e estadualização dos sistemas de trens metropolitanos no Brasil e seus impactos nos instrumentos de gestão e coordenação das políticas públicas metropolitanas”, pela Fundação Getúlio Vargas.
Estação Engenheiro Pedreira, distrito de Japeri. Dez da manhã e o desembarque na cidade já apresenta superlotação.
“Eu fiquei reprovada em um semestre devido a hora que eu chegava na universidade, por causa dos atrasos dos trens no início dos anos 2000. Eu sofria preconceito, inclusive de colegas que falavam que eu deveria acordar mais cedo para chegar à universidade. O que aquelas pessoas não sabiam era que eu já embarcava no primeiro trem. Fazer universidade fez com que eu me tornasse a pioneira na família. Sendo mulher negra, pobre e periférica contrariei a estatística. Todavia, ir para a Baixada, considerando a sua extensão territorial, a diversidade e a distância de seus municípios, faz com que as viagens tornem cansativas”, diz Lilian.
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A exaustão também é uma palavra presente no vocabulário da assistente administrativa Kelly Martins, também moradora de Japeri. Aos 36 anos de idade, ela já passou metade da vida dependendo dos trens da SuperVia. Cansaço físico, emocional, principalmente em função da distância, são alguns dos fatores que a sobrecarregam. A pandemia da Covid-19 implicou numa piora da sua saúde mental. Lidar com pessoas que estão o tempo todo negligenciando os protocolos de segurança dentro dos vagões, como usar máscaras, a estressa bastante. Kelly identifica também ao racismo no sistema ferroviário.
“Esse é um modelo de transporte público em que o racismo está em todos os lados. Desde os passageiros, até os trabalhadores ambulantes informais. São quase todos negros. E você pode fazer uma analogia com a escravidão. Há um certo tempo, os trens tinham um instrumento que impossibilitava a gente de cair no chão, que eram as ‘chupetas’ (grandes argolas metálicas com as quais os passageiros em pé se seguravam e tentavam se equilibrar durante os solavancos das longas viagens). Aquilo, pra mim, é a própria senzala. Se você considerar que está num trem lotado, sem se movimentar direito, com pessoas esbarrando em você depois de um dia cansativo de trabalho, muitas vezes morrendo de calor sem o conforto de um ar condicionado, não difere muito de um navio negreiro. Não consigo enxergar muita diferença”, afirma Kelly.
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Mas será que essa analogia é um exagero? É possível uma comparação, ainda que metafórica, entre a rede ferroviária de transporte público do Rio de Janeiro e uma das mais perversas formas de diáspora (dispersão forçada de um povo de seu território de origem) conhecidas pela humanidade? Se fomos nos concentrar em um olhar mais contemporâneo dos trens da Supervia, é possível que uma melhoria ou outra possa ser considerada “satisfatória”, nos dias atuais. Os trens estão mais limpos, as portas até conseguem se fechar, por exemplo. Porém, vamos nos concentrar em um dos indicadores mais evidentes dessa polêmica: a superlotação. É evidente que a dimensão de todas as formas de crueldade impostas às populações escravizadas vindas dos países africanos a partir do século XV é de revirar o estômago em termos de proporcionalidade de danos físicos e psíquicos. Entretanto, quando se fala sobre a “otimização de espaço” em navios negreiros, as semelhanças são mais plausíveis. Se nos navios negreiros, famílias inteiras eram submetidas a aberrações ambientais degradantes isso se devia, dentre tantas maldades, às condições mínimas para caber o maior número possível de escravizados.
A SuperVia nunca acorrentou, torturou ou atirou aos trilhos, passageiros moribundos durante o percurso de seus trens como acontecia nesses navios da morte (agredir com chicote, sim). Mas é evidente que durante décadas antes da privatização, em 2007, o cenário era dramaticamente caótico e perigoso. Basta pegar qualquer imagem de arquivo antes da concessionária administrar a estrada de ferro e verificar que, metáforas à parte, corpos negros apinhados rumo ao trabalho, era parte da rotina. Mesmo assim, em 2013, seis anos depois da malha ferroviária pertencer a uma empresa, matéria do jornal Extra noticiava, por exemplo, que “um homem caiu de um trem da SuperVia, na manhã desta sexta-feira, na Estação da Vila Militar, Zona Oeste do Rio. A composição seguia superlotada. O homem—que teria embarcado em Padre Miguel—estava pendurado na porta e não conseguiu se segurar”.*
Racismo, ‘Desenvolvimento’ e ‘Industrialização’
A falta de investimentos públicos na manutenção e expansão fez com que o transporte ferroviário da SuperVia perdesse bastante força nos anos 1990. Com a prioridade da época focada nos ônibus e com o forte lobby político, amplamente conhecido e investigado por diversas ilegalidades (e responsável pela eleição de vários prefeitos em vários municípios), o sistema ferroviário passou a entrar em uma profunda crise. A Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), que, em 1984, chegou a transportar um milhão de passageiros por dia, sofreu uma degradação que chegou a ponto de afetar a segurança das operações gerando acidentes, a pontualidade, a confiabilidade das viagens, a segurança e a limpeza das estações e composições. Isto resultou na queda constante e brutal do número de passageiros que, em 1996, chegou a apenas 145.000 passageiros por dia.
Kelly Martins, administradora: “o trem é a própria senzala”.
Entretanto, quando nos voltamos aos investimentos injetados durante o processo de privatização da malha ferroviária, os dados parecem sobrepujar a nossa percepção de desenvolvimento. Ao todo, entre os governos Sérgio Cabral e Luis Fernando Pezão, foram adquiridas 142 composições a partir de 2007, financiadas com recursos remanescentes de um empréstimo de US$600 milhões (R$3,20 bilhões em valores atuais), recebido junto ao Banco Mundial e uma parceria público-privada entre a SuperVia, na época tendo como sócia majoritária, a Odebrecht TransPort e o Governo do Estado do Rio.
Com tantos zeros à direita, a cidade do Rio e a Baixada Fluminense deveriam ser abastecidas com um dos melhores sistemas de transporte ferroviários do mundo. O que deu errado, então? Uma possível resposta talvez esteja em um apontamento produzido pelo filósofo e jurista Silvio Almeida em seu livro Racismo Estrutural, obra que se tornou um clássico instantâneo por explicar de forma didática as várias facetas que constroem a sociedade racista da qual fazemos parte.
Ao abordar o tema do racismo e do desenvolvimento econômico, Silvio Almeida escreve: “A industrialização não resultou em distribuição de renda e bem-estar para a população. Sem distribuição de renda, a industrialização e o aumento da população, tornaram-se expressões de uma ‘modernização conservadora’ que, em nome da manutenção da desigualdade e da concentração de renda, exigiram a supressão da democracia, da cidadania e a ocultação dos conflitos sociais, inclusive os de natureza racial. A ideologia de uma falsa democracia racial teve papel fundamental nesse processo. O racismo não é um mero reflexo de estruturas arcaicas que poderiam ser superadas com a modernização, pois a modernização também é racista”.
Uma Empresa com ‘Permissão de Matar’
A Casa Fluminense é uma organização civil que defende políticas e ações públicas para melhorar a qualidade de vida na região metropolitana do Rio de Janeiro. É também coordenadora do Mapa da Desigualdade 2020, conjunto de dados, estatísticas e indicadores socioeconômicos—dentre eles os de transporte público—do Estado do Rio de Janeiro. No Mapa, os territórios que compõem a Baixada Fluminense apontam algumas das mais gritantes discrepâncias sobre a realidade da região.
Para Guilherme Braga, integrante da Casa e um dos que capitanearam a composição do Mapa, mesmo após o anúncio de vultosos investimentos na rede ferroviária fluminense, a sensação de insuficiência na qualidade do serviço é gritante: “Desde o anúncio dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, os trens urbanos foram os que receberam menos investimentos entre os modais de transporte público, embora o montante investido tenha ultrapassado quase R$1 bilhão. Ou seja, há uma perpetuação de um estereótipo dos territórios do subúrbio do Rio de Janeiro e das cidades periféricas da Baixada nos últimos 30 anos pra cá, considerando que são majoritariamente negras e pobres, de que padrões de normas técnicas para se garantir qualidade no transporte não são obrigatoriamente uma regra. É um planejamento excludente, classista e racista. Um grande indicador dessa perda de qualidade são os vãos que separam as plataformas e as composições. Os do metrô, que é um modal de transporte pensado para a classe média branca, é padronizado. Na SuperVia, os vãos entre trem e plataforma em determinadas estações são verdadeiros abismos. Uma pessoa pode cair naqueles vãos e morrer”.
E, de fato, pessoas morrem nas estações da SuperVia. O Mapa da Desigualdade 2020 também coletou dados que comprovam a necropolítica existente no sistema de transporte público do Rio de Janeiro. Apoiado em números oferecidos pelo DataSUS, 42,5% das mortes causadas por atropelamentos ferroviários no Brasil em 2018 ocorreram na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (91 casos). Dentre estas vítimas, 82,4% eram negros.
Uma das vítimas foi a estudante Joana Bonifácio Gouveia, de 19 anos, jovem, negra, universitária e moradora de São João de Meriti, morta no dia 24 de abril de 2017, na estação de Coelho da Rocha, no ramal Belford Roxo. Ao tentar entrar no trem, a estudante prendeu uma das pernas na porta do vagão. Desequilibrou-se e caiu no vão entre o trem e a plataforma, morrendo atropelada logo em seguida. Ela estava a caminho da universidade em Campo Grande, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde cursava biologia. O itinerário dela de trem levava cerca de duas horas e vinte minutos para chegar à faculdade. Ao longo do tempo, a causa do acidente foi mudando, segundo o que diziam as fontes oficiais. Na primeira nota em resposta ao acidente, a SuperVia afirmou que Joana havia cometido suicídio. Mais tarde descobriu-se que esse era um argumento comum em casos semelhantes e se é recorrente, não é acidente.
Mais um ano depois da morte de Joana, o ritmo de investigação prosseguia. Em uma reportagem da Agência Pública, o Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão ligado ao governo do Estado, coletou outros dados referentes a essa modalidade de morte nos trilhos da SuperVia. Apenas observando os casos de atropelamento ferroviário que ocorreram em municípios cortados pelos trens da concessionária, percebeu-se que, em 2017, ano em que Joana morreu, foram 66 casos, 30 a mais do que em 2016 e 41 a mais do que em 2015. No total, de 2008 a 2017, foram 285 casos de homicídio culposo provocado por atropelamento ferroviário e 138 casos de lesão corporal culposa provocada por atropelamento ferroviário nos municípios que são cortados por trens da SuperVia.
Em Japeri, Mobilidade Urbana Não Atende à População
Apresentando-se como uma extrema antítese a toda poderosa concessionária da malha ferroviária fluminense, um coletivo de moradores humildes de Japeri, preocupados em dar um caráter mais humanitário ao transporte público da população local, articula, desde 2015, melhorias junto à prefeitura da cidade. Carlos Evandro, junto com outras quatro pessoas, fundou a Associação Mobiliza Japeri que, já no ano seguinte à sua fundação, havia realizado um seminário, que contou com a participação das associações de moradores de bairros periféricos da cidade e com a cooperação do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), cuja missão é promover o transporte ambientalmente sustentável e equitativo em todo o mundo.
Na época, um dos assuntos em pauta tratava de mudanças no Plano Diretor da cidade, dentre elas, requalificar as estações ferroviárias de Engenheiro Pedreira e Japeri baseado no conceito de Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS). Fora do conjunto de premissas que englobam o DOTS, Japeri, assim como tantos outros aglomerados urbanos do país, apresenta um modelo de crescimento urbano espraiado e disperso, setorizando diferentes áreas da cidade. O resultado desse modelo são cidades segregadas socialmente, que impacta negativamente no desenvolvimento socioeconômico das mesmas.
“Não temos uma quantidade de linhas de ônibus que atendam à periferia da cidade. Como a maioria das estradas que levam aos bairros não são asfaltadas ainda, os veículos sofrem avarias, há mais demora e atrasos, o que dificulta a vida dos moradores pobres de irem para os seus empregos bem longe daqui. Além disso, ficamos muito dependentes de moto-táxis. Nada contra esses trabalhadores, mas esse modelo de transporte não é confortável e seguro. Limita muito o deslocamento, principalmente para os idosos”, explica Carlos Evandro.
À esquerda: Carlos Evandro, do Mobiliza Japeri e padre Jacques Kwangala (à direita): “as periferias não discutirem políticas públicas também é uma forma de escravizar”.
Uma outra mudança no Plano Diretor que poderia facilitar a vida dos moradores de Japeri, mas que, ao mesmo tempo, expõe as entranhas de uma cidade sem lei, seria a instalação de uma passarela no centro de Engenheiro Pedreira, distrito da cidade, onde hoje existe uma cancela. Após alguns acidentes automobilísticos e atropelamentos de transeuntes, a SuperVia determinou o fechamento da mesma, murando-a dos dois lados. A prefeitura se comprometeu em construir um viaduto no lugar da passagem de nível.
Patrícia Alves, outra representante do Mobiliza Japeri, explica o que houve: “O problema é que o viaduto foi construído há quase 1km do lugar combinado, no bairro São Jorge, e a cancela foi sendo destruída aos poucos e consertada pela SuperVia sucessivas vezes. Até que foi reaberta, de forma clandestina, com um trator na calçada, a noite, [mas] a concessionária desistiu de consertar mais uma vez. Hoje, sem controle algum, carros de pequeno porte, moto-táxis e pessoas trafegam livremente em um trecho que não há sinal sonoro de aviso de aproximação dos trens. Os maquinistas soem os apitos para que se evite uma tragédia”.
De acordo com o padre Jacques Kwangala, coordenador da pastoral afro e vigário da Igreja do Senhor do Bonfim de Engenheiro Pedreira, as lógicas colonial e escravagista, que se perpetuaram até os dias atuais, obtêm expressivas vantagens na construção da “ignorância” da periferia em enfrentar seus próprios problemas junto ao poder público. Devido a essa falta de compreensão sobre como políticas públicas deveriam ser melhor discutidas e contar com uma participação mais ampla da população pobre, preta e periférica, Jacques disse:
“Quando estamos em uma sociedade baseada numa monocultura europeia, que não valoriza a cultura negra, que é baseada em privilégios infligidos pela branquitude e que nega constantemente sua diversidade racial e sua pluralidade econômica, não se construirão apenas trens, mas se construirão caixões de ferro com pessoas negras vivas dentro delas. Se persistirmos em pensar apenas com a nossa individualidade, continuaremos a sermos escravizados pelo atraso”, conclui Padre Jacques.
*Essa reportagem faz parte do projeto “Enraizando o Antirracismo nas Favelas” do site de notícias Rio On Watch. Para saber mais, acesse: https://rioonwatch.org.br/
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