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Tribunal internacional julga Bolsonaro por crimes contra a humanidade

Segundo denúncia, governo atuou para disseminar vírus da covid-19 no país. Veredito será divulgado em julho

Rafael Ciscati

6 min

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Era já final de março de 2020, e a pandemia do novo coronavírus chegara ao Brasil há pouco, quando o presidente Jair Bolsonaro foi à TV fazer um de seus primeiros pronunciamentos sobre a crise sanitária. “90% de nós não teremos qualquer manifestação caso se contamine (pelo vírus)”, afirmou, para a seguir completar: “No  meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. […] Seria, quando muito, acometido de uma gripezinha, ou resfriadinho”. Desde então,contrariando as previsões do presidente, pelo menos 666 mil pessoas morreram vítimas do vírus no Brasil. O país se tornou um dos epicentros globais da pandemia: com 3% da população mundial, concentrou 11% das mortes.

O pronunciamento do presidente foi reexibido logo no início da 50a sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP), realizada nos dias 24 e 25 deste mês simultaneamente em Roma e na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. A corte internacional, presidida pelo ex-juiz italiano Luigi Ferrajoli, se encarrega de julgar crimes cometidos contra a humanidade e contra populações minorizadas. Em análise, estava a atuação do governo federal — e do presidente Bolsonaro em particular — durante a pandemia de covid-19. De acordo com a denúncia oferecida por organizações sociais e movimentos populares brasileiros, o mandatário foi responsável pela disseminação deliberada do vírus no Brasil, ao aderir à tese da “imunidade de rebanho”: na lógica do presidente,segundo os denunciantes, a contaminação pelo patógeno bastaria para conferir imunidade natural à população. 

O TPP é um “tribunal de opinião”: não têm autoridade para aplicar sanções, mas seus veredictos têm peso simbólico importante, e são encaminhados a cortes internacionais com poder para punir Estados e pessoas. “Esse julgamento faz parte de uma disputa pela narrativa da história” disse Sheila de Carvalho, advogada da Coalizão Negra por Direitos, e uma das responsáveis pela sustentação oral da denúncia. “ O governo brasileiro investe na propagação de notícias falsas. Não podemos deixar que se apague a história do que realmente aconteceu no Brasil. Queremos que as conclusões deste julgamento sejam um marcador do que realmente aconteceu no país”. 

A denúncia contra o Estado brasileiro ao TPP foi articulada ao longo de meses pela Coalizão Negra por Direitos, pela Comissão Arns, pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pela Internacional de Serviços Públicos (PSI). Na avaliação das denunciantes, os atos e omissões do governo brasileiro provocaram “a morte e o adoecimento de milhares de pessoas, afetando desproporcionalmente a população indígena, negra e os profissionais da saúde”. 

Ao longo dos dois dias de julgamento, nove testemunhas se sucederam na tentativa de traçar um quadro do que se passou no Brasil nos últimos dois anos. 
“Nos cabe aqui criar uma opinião pública crítica e indignada para confrontar a desumanização que esse governo tenta nos impor”, disse Wania Sant’Anna, da Coalizão Negra por Direitos, durante a abertura da sessão. 

“Essa sessão deverá impactar a consciência política dos brasileiros e contribuir para restaurar a indignação quanto à impunidade do presidente Jair Messias Bolsonaro em seus crimes contra a humanidade — a incitação ao genocídio, atingindo a população negra, os povos indígenas e os profissionais de saúde na pandemia de Covid-19”, disse Paulo Sergio Pinheiro, representante da Comissão Arns, também durante a abertura. 

A denúncia apresentada pelas organizações foi em parte baseada na pesquisa desenvolvida pela professora Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública da USP. Em um trabalho publicado no ano passado, Deisy e os colegas, em parceria com a Conectas Direitos Humanos, analisaram mais de 3 mil normas publicadas pelo governo federal referentes ao enfrentamento à crise sanitária. O conjunto inclui desde as tentativas de ampliar o conceito de “atividades essenciais” (aquelas cuja atuação deveria continuar normalmente ainda que durante os períodos de distanciamento social), até os planos do governo para cercear a autonomia de prefeitos e governadores — e impedi-los de decretar quarentenas. A tentativa foi frustrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A partir disso, o trabalho concluiu que o governo atuou para propagar o vírus, apostando na tese da imunidade de rebanho. “Há coerência entre o que o governo disse e o que o governo fez. Existe uma estratégia federal de disseminação da covid-19”, afirmou Deisy, que testemunhou durante o julgamento. 

Durante a sessão, o corpo de jurados questionou os denunciantes a respeito das particularidades do caso brasileiro. Lembraram que outros governos, além do brasileiro, adotaram posturas anti científicas durante a pandemia. “É fato: o Brasil não é o único local do mundo onde o negacionismo e o autoritarismo imperam. Mas o Brasil tinha mecanismos para fazer frente à pandemia”, disse Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil (e conselheira do Fundo Brasil de Direitos Humanos). Uma das testemunhas chamadas pela acusação, Jurema apresentou ao júri as conclusões de uma pesquisa conduzida pelo movimento Alerta — uma coalizão de entidades do terceiro setor. O trabalho avaliou quantas vidas poderiam ter sido poupadas durante o primeiro ano de pandemia caso tivessem sido adotadas medidas de distanciamento social e o adequado fornecimento de insumos médicos, como oxigênio medicinal. Pelas contas do grupo, publicadas em revistas científicas, 40% das mortes ocorridas em 2020 em decorrência da covid-19 poderiam ter sido evitadas. 

Os atos do governo afetaram, em especial, a população negra, os povos indígenas e os profissionais de saúde. Em maio de 2020, dados da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo indicavam que as chances de uma pessoa negra morrer vítima de covid-19 eram 62% maiores que as de uma pessoa branca. No caso dos povos indígenas, a omissão do Estado foi tamanha que foi preciso que a Apib recorresse ao STF, cobrando que o governo desenhasse um plano para contenção da pandemia nas aldeias. 

Veredito será divulgado em julho
O TPP é um tribunal de opinião dedicado aos direitos dos povos, com sede em Roma, na Itália. Foi criado em 1979 e é herdeiro do Tribunal Russell, constituído em 1966 para investigar crimes e atrocidades na guerra do Vietnã. Seus principais objetivos são “ gerar verdade, memória e reparação moral”. 
Durante a sessão encerrada na última quarta-feira, o tribunal explicou que notificou o  governo brasileiro com antecedência, para que se defendesse das denúncias. O governo disse não reconhecer o tribunal,e não enviou representantes para o julgamento. O júri do TPP vai se debruçar sobre as evidências apresentadas ao longo do próximo mês, e deve apresentar seu veredito em julho.

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