Vale do Javari: “Ofereceram R$80 mil pela minha cabeça”, diz liderança indígena
Coordenador da Univaja, Paulo Marubo convive com ameaças por denunciar madeireiros, pescadores ilegais e garimpeiros. Organização quer apoiar Funai em ações de fiscalização.
Rafael Ciscati
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Foto: a cidade de Atalaia do Norte, onde fica a sede da Univaja (Ascom/PMATN)
Em maio deste ano, pouco antes de o indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips serem assassinados no Vale do Javari (AM), Paulo Marubo recebeu um aviso. “Uma moça me procurou para dizer que queriam me matar”. Coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Marubo denuncia, há anos, o avanço de madeireiros, pescadores ilegais e narcotraficantes na região. A atuação coloca sua vida em risco. “Ofereceram R$80 mil pela minha cabeça”.
Ele lembra que, pelo menos desde 2018, a Univaja alerta para o recrudescimento da violência na região, a para o enfraquecimento das bases da Fundação Nacional do índio (Funai) na terra indígena. Com mais de 8 milhões de hectares, a Terra Indígena Vale do Javari é a segunda maior do país. “As bases de fiscalização estão sem recursos humanos e financeiros para ações de fiscalização dos limites da TI. A base de fiscalização do rio Curuçá está praticamente sob a responsabilidade dos próprios indígenas, que colocam em risco as suas vidas para realizar a fiscalização”, escreveu a organização em nota divulgada há quatro anos.
No começo de setembro, Marubo conta que a Univaja recebeu representantes da Funai para pactuar ações conjuntas. A ideia é de que os indígenas apoiem o governo nas estratégias de monitoramento do território. Para Marubo, preocupa especialmente o avanço do garimpo ao sul do Vale do Javari. “Num único dia, eles destroem um lago. Sabemos que garimpeiros armados já chegaram a uma aldeia do povo kanamari”.
Marubo conversou com a reportagem durante encontro promovido pelo Fundo Brasil — mesma instituição que mantém Brasil de Direitos — em Salvador (BA).
BRASIL DE DIREITOS: O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips chamou a atenção para a escalada da violência no Vale do Javari, e para a ausência do Estado na região. Desde então, algo mudou?
PAULO MARUBO: Há uma movimentação do Estado para trabalhar em conjunto com o movimento indígena, algo que não acontecia há muito tempo. O movimento indígena alertava o governo sobre a violência na região, mas não eram tomadas providências. Como essa é uma área muito grande, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Polícia Federal (PF), sozinhas, fazer ações [de fiscalização]. Por isso, se reaproximaram do movimento indígena, para pactuar ações conjuntas.
A Funai procurou a Univaja?
A Univaja é que procurou a Funai. Era uma aproximação que já buscávamos. No passado, oferecemos doações para a Funai, como uma embarcação. Queríamos disponibilizar recursos para fortalecer as bases de proteção da instituição. Mas o governo recusou. Depois dos assassinatos de Dom e Bruno, parece que acordaram. Na segunda-feira (12), fizemos uma primeira reunião para pactuar ações de vigilância dentro do Vale do Javari. Essas ações ainda não tem data para começar. Mas queremos colaborar, porque o número de invasores na terra indígena continua alto. Sobretudo na área dos isolados. Nosso medo é de que uma tragédia aconteça com eles. Nós demoraríamos a saber, porque não temos contato com esses povos que vivem em isolamento voluntário.
Ações conjuntas com a Funai costumavam acontecer no passado?
Fazíamos ações conjuntas de monitoramento. Por mais que o movimento indígena tivesse críticas à Funai, cobranças em relação ao Estado, trabalhávamos em parceria. Isso mudou com o Marcelo Xavier (atual presidente da Funai). O diálogo ficou mais difícil a partir de 2019, quando o Bolsonaro chegou à presidência. As ações conjuntas diminuíram, o número de invasores aumentou. A gente fazia denúncias, mas as denúncias não valiam mais nada.
Uma carta divulgada pela Univaja em 2018 já alertava para a fragilidade da Funai na região. O problema é anterior à chegada de Bolsonaro ao poder?
Fizemos alertas logo que a violência se agravou. Já durante a campanha à presidência, Bolsonaro dizia que não ia demarcar terras indígenas, e que indígenas deviam ser integrados à sociedade nacional, porque usam celular e internet. Isso fez invasores se sentirem autorizados.
Você conta que vem sendo ameaçado.
Denunciamos pescadores ilegais, narcotraficantes, madeireiros, garimpeiros. Era muito raro que o Estado tomasse providências. Mas, as vezes, aconteciam apreensões. Começaram a contratar pistoleiros para matar as lideranças locais. Eu sou uma dessas lideranças indígenas ameaçadas de morte. Minha cabeça vale R$80 mil.
Como você soube disso? Houve uma ameaça direta?
O município de Atalaia, onde fica a sede da Univaja, é muito pequeno. Todos se conhecem. Somos muito próximos dessas pessoas. Os pistoleiros a quem são encomendadas as execuções são de Tabatinga, uma cidade da fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Sempre que alguém estranho chega a Atalaia, as pessoas notam. E nos alertam. Em maio, antes dos assassinatos de Dom e Bruno, recebi um alerta. Uma mulher me disse: “toma cuidado, porque um homem chamado Cinei quer sua cabeça”. Na semana passada (a semana do dia 05 de setembro), outro coordenador da Univaja também foi ameaçado. Dois pistoleiros foram até a sede da organização procurar por ele.
Essa foi a primeira ameaça que você recebeu?
Não, houve outros casos. Informamos o Ministério Público Federal (MPF). mas ninguém tomou providências. Por isso Bruno foi morto: ele já havia relatado as ameaças que enfrentava. Mas nunca foram tomadas providências.
Mesmo agora, nada foi feito para te proteger?
Estamos articulando com o Programa Nacional de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos em Brasília. Mas vimos as dificuldades deles. É muita burocracia. Não basta avisar sobre as ameaças. Eles não têm recursos para oferecer escolta imediata. Requerem um tempo para análise. Enquanto isso, a gente vai vivendo do jeito que a gente vive.
Há relatos de que o garimpo avança na região. É uma ameaça mais recente?
Os garimpeiros se concentram na parte sul da terra indígena, no ponto em que o rio Jutaí encontra o rio Jandiatuba. É uma área de fronteira onde vivem povos isolados. Ninguém sabe se os isolados entraram em conflito com os garimpeiros ou não. O rio Jutaí foi todo poluído. Lá, você não vê mais peixe. Os ribeirinhos que vivem nesse rios não têm coragem de fazer denúncias. De vez em quando, um barco grande, transportando mulheres, sobe o rio. Eles chamam de “barco do amor”. A área afetada pelo garimpo cresce muito depressa. Num único dia, eles destroem um lago. Sabemos que garimpeiros armados já chegaram a uma aldeia do povo kanamari. Os indígenas ficaram com medo, as mulheres fugiram para o mato. Continuamos a denunciar essa situação. Por isso, sou ameaçado.
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