Violência policial : grupo propõe cortar verba da polícia para combater letalidade
Para Fransérgio Goulart, da Idmjr, mecanismos tradicionais de controle da atividade policial estão esgotados. Campanha defende remanejar verba para áreas sociais
Rafael Ciscati
7 min
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As polícias paulistas mataram 702 pessoas entre janeiro e o final de novembro de 2024. Os números são do Ministério Público de São Paulo e dão conta de que, desde o início da gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos), em 2022, as forças de segurança paulista se tornaram mais letais: as mortes provocadas por intervenção policial aumentaram 98%.
No começo dessa semana, causou horror a imagem de um policial militar filmado enquanto arremessava um homem do alto de uma ponte. O rapaz sobreviveu. O abuso flagrado engrossou a já longa lista de violências e mortes envolvendo a PM no estado. E deflagrou uma crise na gestão de um governador que assumiu o posto criticando o uso de câmeras corporais e armamento não-letal pelas tropas — medidas que fizeram a letalidade policial cair durante a gestão anterior.
A realidade de São Paulo se assemelha à verificada em mais da metade dos estados brasileiros, onde o número de mortes provocadas por policiais cresce. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que entre 2022 e 2023, a letalidade policial aumentou em 13 estados e no Distrito Federal.
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No ano passado, as polícias do país mataram 6393 pessoas. Estão entre as mais violentas do mundo. Apenas para fins de comparação, no mesmo ano, as polícias dos EUA mataram 1353 pessoas.
Na avaliação do historiador Fransérgio Goulart, a alta na violência policial dá sinais de que os mecanismos desenhados para fiscalizar e controlar a atuação das tropas falharam — e devem ser repensados.
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Goulart é coordenador da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (Idmjr), uma organização da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, que questiona as políticas de segurança pública adotadas pelo Brasil. O grupo pôs na rua uma campanha que defende reduzir a fatia dos orçamentos estaduais destinada ao financiamento das forças policiais.
A ideia, explica o historiador, é dimimuir o recurso destinado à compra de armamento bélico, como blindados, comumente utilizados em operações em favelas. “Não queremos reduzir os salários dos policiais”, afirma. “O desinvestimento da polícia é um novo dispositivo para reduzir a letalidade policial. Quando a gente tira recursos para a compra de caveirões e armamento, a letalidade diminui”.
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Na leitura do grupo, há uma distorção no orçamento público: hoje, no Rio de Janeiro, a pasta da Segurança Pública é a segunda em volume de recursos. “Queremos remanejar esses recursos, para áreas como educação e saúde”, explica. “Os mecanismos de controle tradicionais, como os ministérios públicos e as corregedorias, não têm produzido os efeitos necessários. Por isso, precisamos nos desafiar, pensar fora da caixa”.
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Se o objetivo é reduzir a letalidade policial, não é mais eficiente aprimorar os mecanismos de controle, como os ministérios públicos e as corregedorias?
Fransérgio Goulart: O desinvestimento da polícia é um novo dispositivo de controle, destinaado a reduzir a letalidade policial. Quando a gente tira recursos —aqui, no Rio de Janeiro, conseguimos tirar recursos para compra de caveirões, munições e armamento de guerra — é óbvio que a letalidade das ações policiais diminui, e a gente produz controle. A Idmjr inaugura essa discussão no Brasil. Mas, no mundo, em especial nos EUA, essa discussão sobre desinvestimento já acontece. Especialmente depois do assassinato de George Floyd. Porque os mecanismos de controle historicamente institucionalizados, como os ministérios públicos e corregedorias, não têm sido suficientes. Precisamos nos desafiar e pensar formas novas. Que o desinvestimento possa ser uma nova forma de produzir controle.Propomos isso, mas também precisamos trabalhar na chave do controle social da polícia. O convite é para pensar fora das lógicas tradicionais, que não têm funcionado.
Sem armamento, os policiais não vão ficar vulneráveis a grupos criminosos?
Primeiro, é preciso entender que, hoje, é o Estado que viola os direitos das populações. O Estado comete crime. A circulação de armas, que eventualmente chegam às milícias, é também produzida pelas polícias: que, em alguns casos, desviam e vendem armamento. Hoje, a polícia coloca a si mesma em risco. A crítica da Idmjr tem como alvo a instituição polícia, e não os policiais individualmente. Entedemos que a instituição é violadora, deixa as armas circularem – e, depois, insiste no discurso de que é preciso amar as polícias para enfrentar as milícias. Esses grupos criminosos só existem porque há participação, por ação ou omissão, do Estado.
Vocês apontam que, hoje, a pasta da Segurança Pública é a segunda maior, em volume de recursos, do Estado do Rio de Janeiro. É uma verba mal utilizada?
Esse recurso vem sendo usado para a produção de morte. De tempos para cá, a pasta de Segurança Pública tem sido a segunda com maior aporte orçamentário. No brasil, isso é uma tendência. Na nossa avaliação, esse dinheiro não está sendo mal utilizado: o Estado quer produzir isso. Hoje, vemos que, em diferentes estados no Brasil, as pastas de segurança pública estão entre as cinco com maior orçamento. Trata-se de um projeto político articulado pelas bancadas da bala, boi e Bíblia. Na perspectiva desses setores, o recurso é bem utilizado — produz morte e o encarceramento em massa da população pobre e negra. A gente observa isso no Rio de Janeiro, mas o mesmo acontece em São Paulo, na Bahia, no Paraná. Na Idmjr, trabalhamos a partir de outra perspectiva. Entendemos que o orçamento público deveria ser investido em políticas sociais. E achamos que esses recursos deveriam ser direcionados para outras áreas, como educação e saúde.
Você são uma organização abolicionista, que defende uma sociedade sem polícias. O desinvestimento é um primeiro passo nesse sentido?
Lutamos pela abolição das políticas e prisões. E essa luta , é preciso dizer, já está em curso. Recentemente, recebemos – em conjunto com outras instituições – a geógrafa abolicionista Ruth Gilmore. Ela diz que a abolição é “emancipação em ensaio”. Na Idmjr, tentamos produzir esses ensaios, esses dispositivos, cotidianamente. É preciso ressaltar isso: que a abolição não é utópica. O povo negro, as favelas e periferias produzem a abolição cotidianamente. A grande questão é que o discurso da abolição é travado por parte do campo de direitos humanos e da direita. Ainda assim, avançamos.
Quem cuidaria da segurança pública nesse cenário de inexistência das polícias?
Pensa-se que as polícias vão desaparecer de uma hora para a outra. Não é isso. É processo. Por isso, a gente também precisa historicizar. A instituição polícia é nova. Já experimentamos, enquanto sociedade, outras formas de lidar com a segurança. O problema é que só entendemos a nossa história a partir do advento do capitalismo. Com o advento do capitalismo, as polícias surgem e passam a exercer o monopólio da violência (que passa a ser do Estado). Mas já tivemos, em outras sociedades, processos de proteção e cuidado que eram produzidos de outras formas. Não necessariamente melhores. Aí está o desafio: sabemos, como povo pobre e favelado, o que não queremos. Sabemos que a polícia não é a instituição que vai resolver nossos problemas.Não precisamos responder o que vai ser posto no lugar. A história e suas correlações de forças vai responder o que surgirá. Precisamos criar novos imaginários.
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