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Violência policial reflete cultura política, diz estudioso

Segundo Ignácio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), há uma "política de extermínio" em voga no Brasil, que privilegia o confronto à investigação

Rafael Ciscati

12 min

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Em 2019, o sociólogo Ignácio Cano, do Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) publicou um trabalho em que analisava o uso da força policial em 5 países latino-americanos: Brasil, Colômbia, El Salvador, México e Venezuela.

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Em pesquisas anteriores, Cano tinha descoberto que, em situações de normalidade — quando não há suspeitas de que a polícia comete abusos — o número de mortes provocados por policiais costuma girar em torno de 5% do total de homicídios cometidos em uma dada cidade ou país. A cada 100 homicídios intencionais, 5 acontecem durante confronto com policiais.

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Se esse limite é ultrapassado, há motivos para preocupação: pode haver sinais de que a polícia faz uso de força letal de maneira desproporcional, comete abusos e execuções.

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Na nova pesquisa, Cano analisou dados até 2017. Concluiu que, naquele ano, o Brasil tinha alcançado uma marca preocupante: a cada 100 homicídios registrado no país, pouco mais de 7 eram provocados por policiais. Na ocasião, o dado colocava as polícias brasileiras entre as mais letais do continente: ficavam atrás das venezuelanas (26% dos homicídios), e de El Salvador (10,3%).

Desde então, a situação brasileira se deteriorou. Em 2018, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as polícias brasileiras foram as que mais mataram em todo o mundo. A cada 100 homicídios ocorridos no país, 11 são provocados por policiais. “Esses números são sinais de que existe, no Brasil, uma política de extermínio”, disse Cano, à Brasil de Direitos.

A questão ganhou ainda novos contornos durante a pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2). O  número de crimes diminuiu durante o períodos de distanciamento social, mas o número de mortes provocadas por policiais disparou. Denúncias de abuso fizeram o governador de São Paulo, João Dória, anunciar um programa de retreinamento da Polícia Militar.

Na análise de Cano, antes de pensar em retreinamento, é preciso mudar uma cultura política que vigora no país e que privilegia ações violentas, em detrimento de atividades de investigação. “O próprio Doria se elegeu pregando o discursos de endurecimento da ação policial”, afirma. Para ele, enquanto vigorar essa “política de extermínio”, dificilmente será possível  implementar medidas técnicas de combate à letalidade policial.

Crítico ferrenho da militarização da segurança pública ( segundo ele, “gera apenas uma ilusão de segurança”),  Cano vê certo simplismo no discurso que prega o fim da Polícia Militar. “A polícia civil, no Rio de Janeiro, tem caveirão.  Isso mostra que não é a militarização da estrutura que faz a grande diferença, mas a militarização  das estratégias, das táticas, da própria doutrina”.

Brasil de Direitos: As polícias brasileiras são apontadas, de maneira recorrente, como estando entre as mais letais em todo o mundo. Esse quadro se agravou nos últimos meses? O que explica essa escalada da violência policial?
Ignácio Cano:
Existe uma questão histórica e um problema conjuntural. A letalidade no Brasil é elevada há muitos anos, sobretudo em alguns estados — como no Rio de Janeiro, ou em São Paulo. Isso se agravou nos últimos tempo, em função do clima político. Ganharam destaque programas políticos que defendem, enfaticamente, que “bandido bom é bandido morto”. Em função disso, o número de pessoas mortas pelas policias  vem crescendo nos últimos anos no Brasil, em vários estados. E isso é consequência dessas políticas que triunfaram eleitoralmente.

Nesse aspecto, as polícias brasileiras são muito diferentes das polícias no restante da América Latina?
Fizemos um projeto em 5 países da America Latina. Todos países com esse mesmo problema, de alta letalidade policial. A situação era mais grave na Venezuela e em El Salvador. Em terceiro lugar, vinha o Brasil. O Brasil está numa posição grave mas, de fato, não é o único país latino-americana onde a polícia é motivo de grande preocupação. Mas há outros países, como Chile ou Uruguai, onde esse problema não existe ou é de uma natureza diferente. É interessante observar como países como a Venezuela e o Brasil, que supostamente defendem modelos políticos contrapostos, na hora de lidar com criminalidade — ou a suposta criminalidade — acabam adotando modelos parecidos.

Qual o peso da pandemia nessa equação da letalidade policial? Ela muda o cenário?
A pandemia não aumenta a letalidade policial. Mas ela escancara quais as prioridades do governo. No meio de uma crise sanitária, alguns governos continuam realizando operações policiais em favelas. A prioridade, fica claro, não é salvar vidas — mas, justamente, acabar com as vidas daquelas pessoas consideradas inimigas. É uma grande ironia que seja o Supremo Tribunal Federal (STF) a dizer, por meio de uma decisão liminar, que as operações devem ser interrompidas durante a pandemia. Em circunstâncias normais, se não tivéssemos um projeto político de extermínio, qualquer governo razoável se encarregaria de tomar essa decisão.

Existem formas de repensar a atuação das polícias?
Existem muitas experiências e linhas de atuação para reduzir a letalidade policial.  Há propostas de treinamento, de compra de armamento não letal, de mudanças de protocolo. Já trabalhamos em todas essas frentes. Na conjuntura atual do Brasil, ou a gente acaba com esse projeto político de extermínio — que existe hoje no governo federal e em vários governos estaduais — ou não tem medida técnica que seja capaz operar mudanças.  As medidas técnicas, nesse cenário político, não prosperam. Por exemplo —  depois de muitos anos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos sentenciou o Brasil a publicar os dados de letalidade policial em um ano, coisa que o Brasil não faz. E sentenciou o Estado do Rio de Janeiro a introduzir metas de redução da letalidade policial. Mas temos um governador como o  Wilson Witzel, que faz campanha defendendo que a polícia deve matar mais, deve “atirar na cabecinha”. Nesse clima, pensar numa solução de cunho técnico, ou inclusive jurídico, é fantasia.

Nesse caso, o que deve ser feito?
Primeiro, o cidadão brasileiro tem que se conscientizar de que esse é um projeto anti-humanista. Um projeto ilegal e bárbaro, que só vai gerar mais violência. O dia em que conseguirmos isso, vamos poder, então, pensar medidas de controle de caráter mais técnico. A raiz do problema no Brasil, hoje, é política. E, sem mudança política, nenhuma outra medida faz sentido.

Há casos, na história, em que mudanças de cultura política resultaram em reestruturação das polícias?
Em geral, essas mudanças não são muito rápidas. A não ser na hipótese de uma mudança de regime, ou ao fim de conflitos armados. Isso aconteceu na Irlanda do Norte, por exemplo. Depois do acordo entre protestantes e católicos, foram criadas novas estruturas policiais. Surgiu um órgão de investigação da própria polícia. Estou na África do Sul. Aqui, depois do fim do Apartheid, criou-se um novo regime policial. Afora situações como essas, as mudanças costumam ser graduais, por aproximação. Não são reformas dramáticas. E o Brasil não tem espaço, hoje,  para uma grande mudança policial. A correlação de forças políticas não é favorável. Por enquanto, o importante é defender a lei. Cobrar  que os tribunais atuem, que o Ministério Publico atue, que processem os policiais que executam pessoas. Passo graduais.

Frente as denúncias de abusos policiais, o governo de São Paulo anunciou um programa de retreinamento das polícias. É um bom caminho para mudanças graduais?
O governador João Dória se elegeu com um programa de corte bolsonarista, que prega o endurecimento da ação policial. Uma coisa que acontece muito no Brasil é que, quando a policia mata um alvo considerado errado, quando acaba cometendo um erro escancarado — no caso de a vítima ser escandalosamente inocente, como um uma senhora, uma criança — aí se diz que a polícia e despreparada. E, se é despreparada, a solução seria retreinar. Nas entrelinhas, esse discurso apenas significa que a polícia está matando quem não deveria matar. Precisamos de um projeto politico diferente. Enquanto o Dória defender esse projeto de extermínio — de que é preciso matar mais, ser mais duros — retreinar a policia é fantasia. Outra ilusão que se vive muito é a de que, se houvesse uma polícia muito bem preparada, ela mataria somente as  pessoas certas. Isso não existe. Quando você tem a polícia  entrando em confronto armado em áreas densamente povoadas, é impossível não produzir outras vítimas. Tiroteios em áreas densamente povoadas vão gerar vítimas que não tem nada a ver com o próprio confronto.

Reportagem do jornal Folha de S. Paulo afirma que a proposta de retreinamento foi mal vista pelos policiais. As polícias resistem a mudanças e modernização ?
Elas não são  resistentes a modernização, dependendo do que essa modernização signifique. Em geral, quando você vende um projeto  de modernização, todo mundo adere. Nesse caso, o receio da polícia é outro. Há uma alternância entre governos que mandam matar, e governos que respeitam os direitos humanos. Os policiais sabem disso. O governo manda matar mas, quando ocorre um erro, a culpa é da polícia — e daí a polícia precisa ser retreinada. Em casos assim, a polícia lê retreinamento como um sinal de que ela está despreparada.  É como todo mundo lê. A polícia resiste à interpretação de que a culpa é dela, e de que é preciso retreinar porque a policia é ruim. Muitos policiais frisam sempre isso. Dizem que, quando cumprem as ordens, e matam as pessoas “certas”, os políticos aplaudem. O poder público lucra. Quando morrem as pessoas “erradas”, a culpa é integralmente transferida para as polícias.

É comum que esse debate de combate à letalidade, se inclua a proposta de desmilitarização das polícias. É um caminho?
A militarização para a segurança publica só traz problemas. Gera uma falsa solução, porque o problema da segurança pública depende muito mais de investigação e inteligência, e muito menos do tamanho do canhão ou do calibre da arma. Essa é uma simplificação que muitos acabam comprando — há um problema de segurança, tem tiroteio, chama um blindado. A estrutura militar foi pensada para um contexto bélico, em que você tem um inimigo claramente definido. Há um alvo claro. No caso da segurança pública, você está trabalhando com a sua própria população. O inimigo não está uniformizado. É preciso saber quem é quem, investigar, ter inteligência, se infiltrar nos grupos criminosos. Uma estratégia completamente diferente de uma estratégia militar, que só traz problemas e que, normalmente, é usada como desculpa para justificar abusos dos direitos humanos. Não consegue desarticular o crime organizado e muitas vezes multiplica a violência. Isso aconteceu no México recentemente, e em outros países. Mas o  nosso problema está muito além da militarização. Ela certamente não é um bom caminho para a segurança pública. Mas o problema no Brasil é que existe um projeto político de extermínio. Parte da esquerda tem a ilusão de que a desmilitarização vai resolver o problema. Sobretudo a desmilitarização da polícia militar. Mas a polícia civil, no Rio de Janeiro, tem caveirão.  Isso mostra que não é a militarização da estrutura que faz a grande diferença, mas a militarização  das estratégias, das táticas, da própria doutrina.

É um problema que pode persistir mesmo com o fim da Polícia Militar?
Isso não vai acabar com o fim da PM. Pedir o fim da polícia militar só coloca a PM na defensiva. Porque eles se sentem ameaçados. E, certamente não é a resolução  do problema.Um dia, deveríamos conseguir uma polícia integrada, única e que seja civil. Mas é ilusão pensar que esse é o cerne do problema. Trocar uma polícia militar por uma civil não é garantia de solução.

O senhor, anos atrás, fez uma pesquisa sobre o perfil das pessoas mortas pelas polícias cariocas. Existe um viés racista na atuação das polícias que deve ser combatido?
Fizemos  um estudo anos atrás, em 2010, com dados do Rio de Janeiro, mostrando que, se você é negro, a chance de ser morto — e não apenas ferido pela policia — aumenta em mais ou menos 8%. Essa diferença acontece tanto dentro quanto fora da favela. Existe um viés racial importante. Mas o grande viés, no Brasil,  é o de favela versus asfalto. Da periferia versus centro da cidade. É  isso o que mais determina como as policias agem: com muito mais violência na periferia, e muito mais prudência no asfalto. Mas o viés racial existe é algo de que as polícias não estão cientes. Levamos os resultados do estudo para discutir com policiais, e eles se diziam surpresos. Afirmavam que há muito policiais negros. E, isso é verdade — o cenário brasileiro é diferente do americano, onde você  tem um policial branco matando uma pessoa negra. no Brasil, há muitos policiais negros. Mas isso não garante que a polícia não tenha uma atuação enviesada do ponto de vista racial.

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