Mobilização e articulação

Uma conversa sobre midiativismo

Por Rafael Ciscati (Texto) e Airan Albino (fotos)

O carioca Raull Santiago costuma dizer que trabalha como “midiativista”. O termo é relativamente novo e, Santiago explica, refere-se às pessoas que usam a tecnologia para “denunciar, organizar e mobilizar pessoas através da comunicação”. Aos 30 anos, Santiago é falante e articulado. Nasceu e se criou no complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Uma área da cidade onde vivem, nas contas dos próprios moradores, mais de 200 mil pessoas - nas estatísticas oficiais, o governo registra 69 mil. Um lugar onde política pública, segundo Santiago, é frequentemente sinônimo da presença violenta da polícia militar. 

>>Assista ao bate-papo com Raull Santiago
 



Há quase seis anos, ele e outros sete ativistas criaram o Coletivo Papo Reto. Um grupo de pessoas com formações diversas, dedicadas a produzir “uma nova narrativa sobre a favela”. O coletivo se reuniu, pela primeira vez, em 2013, quando fortes chuvas assolaram o Rio de Janeiro. Houve deslizamentos de terra e, no Complexo do Alemão, casas foram soterradas pela lama. Na ocasião, Santiago e seus colegas usaram as redes sociais para denunciar a morosidade das autoridades em prestar auxílio à população.

Santiago veio a São Paulo 
falar sobre midiativismo e sobre estratégias para produzir comunicação de maneira colaborativa. Trata-se de algo em que o Papo Reto se especializou. Nos últimos seis anos, o grupo realizou eventos culturais dentro da favela. Contou as histórias de seus moradores em vídeo, texto e postagens de redes sociais. Denunciou casos de violência policial. Num de seus projetos mais ambiciosos, conseguiu, com a ajuda dos moradores do Alemão, mapear os horários em que ocorriam as operações do Bope - a tropa de elite da polícia militar carioca - nas diferentes áreas do Complexo: “Percebemos que havia um padrão. A polícia só entrava na favela às 7h, ao meio dia e as 17h”, conta ele. “Os horários de maior movimento, quando as pessoas saem ou voltam para suas casas, vindas do trabalho ou da escola.”
 
Ao longo dos anos, o Papo Reto aprendeu a fazer uso das redes sociais para comunicar ao mundo - e aos moradores do Alemão - o que se passava na favela. Coisas ruins e também coisas boas: “Frequentemente, quando as pessoas falam sobre a favela, abordam somente os problemas vividos ali. Como se esses problemas nascessem na favela”, contou ele durante conversa, no começo de agosto,
com membros da Plataforma Brasil de Direitos. “Virei midiativista para disputar uma narrativa sobre a minha realidade. Mostrando que existe violência, sim, mas que ela não se origina naquele espaço. Ela chega como política pública, e só existe porque faltam garantias de direitos básicos.”
 
Todo o trabalho do Papo Reto é feito a muitas mãos. As notícias chegam ao Coletivo por meio de três grupos de Whatsapp. Cada um deles reúne cerca de 80 pessoas, entre membros do coletivo, moradores e lideranças comunitárias. Foi o jeito encontrado pelo grupo de saber, em tempo real, acontecimentos de todo o Complexo.
 
É também pelo aplicativo que os membros do Papo Reto dividem tarefas, decidem o que deve ser publicado nas redes sociais e lançam propostas de novos projetos. As ideias mais ambiciosas são discutidas em reuniões presenciais, realizadas a cada quinze dias. 
 
Esse esforço organizado garantiu notoriedade ao grupo, que já foi destaque do jornal norte-americano The New York Times. O trabalho também transformou as redes sociais do coletivo em uma fonte de informação e de pressão social. Hoje, elas são usadas também para garantir a segurança dos membros do grupo em momentos de maior exposição: “Em situações de conflito, dentro da favela, eu já chego abrindo um ao vivo do Facebook”, diz o ativista. A estratégia é dissuadir pessoas de cometer violações de direitos humanos, sob o risco de ter a violência transmitida ao vivo, pelas redes sociais, para centenas de pessoas.
 
Toda a conversa com Raull Santigo
ficou em registrada em vídeo e está disponível para consulta. Abaixo, destacamos cinco experiências do Papo Reto que podem servir de referência para a Brasil de Direitos - e para outros projetos de comunicação das organizações dedicadas à defesa de direitos da sociedade civil. 
 
1. Como usar o Whatsapp de maneira estratégica
O complexo do Alemão abriga ao menos 69 mil pessoas, segundo números oficiais, na zona norte do Rio de Janeiro. Trata-se de uma cidade dentro de outra cidade, com todas as suas histórias, problemas e belezas. O Papo Reto precisou criar estratégias próprias para acompanhar todos os acontecimentos da região: “O grande segredo do Papo Reto, uma tecnologia de ponta que usamos e que vou compartilhar com vocês, é um grupo de Whatsapp”, brinca Santiago.
 
Os grupos do Papo Reto - são três - reúnem membros do coletivo e outros moradores da favela. Para montá-los, o Coletivo dividiu o Alemão em áreas menores: “Convidamos duas pessoas de cada área a participar do grupo”, conta Santiago. Essa atuação em duplas permite que as informações compartilhadas sejam checadas: a notícia enviada por uma pessoa é confirmada com a segunda.
 
De início, os grupos foram usados para informar, em tempo real, em quais lugares do Alemão aconteciam tiroteios. A notícia, depois de checada, ia para a página de Facebook do Papo Reto, de modo a orientar a população: “Nos tratávamos essa informação como uma estratégia de redução de danos”, conta Santiago. A postagem no Facebook podia ajudar as pessoas a rever seus trajetos dentro do Complexo, de modo a evitar áreas onde aconteciam conflitos.
 
Com o tempo, no entanto, os grupos passaram a ser usados para compartilhar informações diversas. E deram origem a variadas pautas e projetos. Dentre eles, um grande levantamento sobre a frequência e efeitos das operações policiais: “Depois de meses, todas as informações mandadas nos grupos nos permitiram criar esse mapa da realidade do Complexo do Alemão. Um levantamento que nunca foi organizado por nenhum órgão público”.
 
 
2. Como dividir tarefas
Os integrantes do Papo Reto se dividiram em dois grandes grupos, de modo a facilitar o trabalho do Coletivo. Há um núcleo focado na comunicação e na produção audiovisual. E um segundo núcleo responsável pelas atividades de mediação de conflitos. Esses últimos também administram e checam as informações enviadas nos grupos de moradores.
 
Apesar dessas divisões, todos os membros têm acesso às redes sociais do Coletivo e podem publicar novos conteúdos. No dia a dia, as demandas são tratadas de maneira pragmática: “Quem está mais desafogado assume a tarefa, com suporte de todos os demais”.
 
Além dessas divisões operacionais, o grupo também se organiza segundo temas de atuação. Uma parte de seus integrantes organiza ações, conteúdos e discussões sobre Defesa dos Direitos Humanos. Outra, se dedica a discutir Política de Drogas. E há uma parte dedicada a ações de preservação da memória dentro da favela: “Mas todos esses núcleos entendem a comunicação como algo essencial. Como o eixo central do nosso trabalho”, explica Santiago.
 
3. Como aprovar novas ideias
Há pouca burocracia para isso. Segundo Santiago, novas propostas podem ser apresentadas à distância, pelo grupo de Whatsapp. O espaço virtual permite discussões e permite que as tarefas sejam divididas de maneira eficiente.
 
Mesmo assim, o Papo Reto tenta fazer reuniões presenciais a cada 15 dias. É quando seus membros podem aprofundar discussões começadas no ambiente virtual. E quando têm a chance de avaliar o trabalho feito até ali, para sugerir ajustes. “Uma coisa que a gente aprendeu é que é preciso ser muito honesto o tempo inteiro”, afirma "As pessoas têm de ter liberdade para falar o que está bom, o que está ruim, o que pode melhorar".
 
4. Uma campanha articulada nas redes sociais pode ter impacto social
A primeira ação do Coletivo Papo Reto foi criar uma #hashtag. Um código para agrupar postagens no Twitter. Santiago lembra que, em 2013, quando ocorreram os deslizamentos de terra no complexo, o Alemão vivia um momento de grande atenção midiática. Dois anos antes, por meio de uma parceria público-privada, começara a funcionar o teleférico do Alemão. Na cerimônia de inauguração, compareceram figuras ilustres da política, entre elas a então presidente Dilma Rousseff e o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral: “Quando a gente olhava para o chão, via a lama e o sangue da nossa população. Quando olhava para o alto, via o teleférico passando sobre nossas cabeças”, diz Santiago.
 
Mas havia algo mais para ser visto: nas gôndolas do teleférico, diversas empresas mandaram estampar suas logomarcas. Para pressiona-las a ajudar as famílias desabrigadas, o grupo foi ao Twitter: “Nós publicávamos mensagens como ‘#desabamentonoAlemão e tal empresa ainda não apareceu para ajudar’”. A ação envolveu dezenas de pessoas simultanemanete, e causou barulho o bastante para extrapolar as fronteiras do Alemão: “Nós pautamos as mídias hegemônicas, causamos pressão e conseguimos ajudar as pessoas desabrigadas”.
 
5. A importância de adaptar a linguagem ao público
Santiago lembra que descobriu que queria trabalhar com comunicação depois de fazer um curso sobre direitos humanos. Isso aconteceu pouco antes de o Papo Reto ser criado: “O curso era um projeto da Universidade Cândido Mendes, e trazia algumas informações básicas, mas que eu desconhecia”, conta ele. “Foi quando eu descobri, por exemplo, que o policial precisa ter uma identificação visível na farda”. Ele decidiu que esse conhecimento deveria ser propagado.

Santiago conta que, ao chegar em casa depois de cada aula, transformava o assunto estudado em posts de Facebook. Textos curtos, escritos em linguagem simples. Às vezes, em formato de rap: “Aquilo fez sucesso e começou a viralizar", afirma. Depois de decorar as rimas do rap, as pessoas aprendiam o significado dos conceitos discutidos nos versos. Desde então, Santiago diz entender a comunicação como um instrumento para a conquista de direitos.

 

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